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Nº 1372 - Ano 29 - 29.10.2002

 

 

Orlando Carvalho e sua Revista

José Murilo de Carvalho *

rancisco Iglésias, Júlio Barbosa e Orlando Carvalho constituíram o trio de professores que marcou minha formação na UFMG, entre 1962 e 1965, época que já se torna preocupantemente distante. Francisco Iglésias e Júlio Barbosa foram meus professores na Faculdade de Ciências Econômicas. Iglésias ensinava história e impressionava pela vasta cultura, pelo apurado senso crítico, pela elegância no estilo e no trato. Júlio ensinava sociologia e se fazia admirar pela vasta leitura, pela heterodoxia, pelo brilho da retórica. De Orlando Carvalho não fui aluno, mas foi ele quem me abriu, quando ainda aluno de graduação, as páginas da Revista Brasileira de Estudos Políticos, contribuindo poderosamente para o deslanchamento de minha carreira acadêmica. Aristocrático nos modos, era acessível a todos, aberto a novidades e servia a melhor cachaça que já bebi, envelhecida de muitos anos.

A Revista Brasileira de Estudos Políticos era Orlando Carvalho. Ele a criara em 1956, ele a dirigia, ele solicitava os artigos, ele decidia o que publicar. Naqueles tempos, era bom que assim fosse: não teria funcionado de outro modo. Publicar e manter uma revista acadêmica de qualidade era empresa quase heróica à época. Hoje, 46 anos depois de fundada, a RBEP tornou-se, pela longevidade e pela regularidade, um patrimônio da Ciência Política nacional. Em Minas, a publicação que poderia ter com ela rivalizado era a Revista Brasileira de Ciências Sociais, dirigida por Júlio Barbosa. Mas a RBCS teve vida curta, de apenas cinco números, porque o editor foi atropelado pelo golpe de 1964.

Na condução da revista, Orlando Carvalho era um tanto despótico. Mas era um déspota absolutamente esclarecido. De formação jurídica, ele mesclava na Revista autores desse campo de conhecimento com historiadores, com críticos literários, com os cientistas sociais que começavam a aparecer. Iglésias, por exemplo, foi colaborador assíduo da RBEP. Mais especificamente, Orlando Carvalho fez a ponte entre duas disciplinas, o Direito e a Ciência Política, entre duas tradições intelectuais e entre duas gerações. Combinava a tradição filosófica e jurídica da Ciência Política francesa com o viés empírico norte-americano, sem deixar de valorizar a prata da casa, os autores brasileiros. Entre os últimos, prestigiava os mais antigos, como Víctor Nunes Leal, ainda originário do Direito, mas fazia questão de dar guarida nas páginas da revista aos jovens turcos da Ciência Política, saídos do curso de graduação em Sociologia Política da Faculdade de Ciências Econômicas e dos cursos de pós-graduação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), do Chile, e de universidades norte-americanas. Com o apoio da Fundação Ford, o novo grupo criou o mestrado em Ciência Política da UFMG, em 1965, sob a liderança de Júlio Barbosa. Em 1971, Orlando Carvalho dedicou um número inteiro da RBEP à publicação de trabalhos dos professores e alunos do novo mestrado. Com esse espírito aberto, contribuiu para a formação de um grupo de cientistas políticos e sociólogos que extravasaram as fronteiras estaduais e deixaram sua marca em âmbito nacional.

Em seus próprios estudos de política, de que são bom exemplo os Ensaios de Sociologia Eleitoral, publicados em 1958 na série Estudos Sociais e Políticos, de responsabilidade da RBEP, colocava a contribuição estrangeira a serviço do desenvolvimento de uma Ciência Política nacional, antecipando entre nós muitos temas e métodos que só mais tarde ganhariam respeitabilidade no meio acadêmico. Entre os temas, estavam a natureza do sistema partidário, a origem social das lideranças, a ideologia dos partidos, as finanças partidárias, as práticas eleitorais, inclusive as fraudulentas. Dentre as práticas, descreve a "marmita", o pacote, preparado pelos cabos eleitorais, das cédulas que o eleitor devia colocar nas urnas. Qualquer semelhança com a "cola" de hoje não é mera coincidência. Entre os métodos, usou amplamente dados quantitativos e inaugurou a pesquisa mediante questionário.

A promoção entre nós da Ciência Política não significava para Orlando Carvalho preocupação meramente acadêmica, como era, aliás, de se esperar em um militante da política. Criando a RBEP pouco mais de dez anos após a democratização do país, estava consciente de que o aperfeiçoamento do sistema partidário e das práticas eleitorais era condição essencial para a consolidação da democracia. Nisso, representava o lado bom do udenismo mineiro, personificado sobretudo em Milton Campos. Não foi daquela vez que a democracia se consolidou. A batalha ainda continua, mas faz honra a Orlando Carvalho ter sido um dos militantes de uma causa que é preciso acreditar não ser perdida.

*Cientista político, professor da UFRJ

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