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Nº 1440 - Ano 30 - 27.5.2004

/ Paulo Bezerra

Traduzir é uma arte

Murilo Gontijo


Paulo Bezerra: desafios da tradução
Foto: Foca Lisboa

A tradução de literatura, seja poesia ou prosa, é, acima de tudo,arte. Para debater essa concepção, o Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) trouxe à UFMG, no dia 27 de maio, o professor Paulo Bezerra, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Agraciado com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Crime e Castigo, de Dostoiévski, ele afirma que traduzir é estabelecer diálogo entre culturas. Para ele, o tradutor penetra na cultura do outro, a vivencia, apalpa os seus elementos, sente-os na sua especificidade e os leva para a própria cultura, revestindo-os com a forma que marca essa individualidade cultural, mas sem apagar as peculiaridades do original. Nesta entrevista ao BOLETIM, Bezerra fala sobre os desafios e especificidades do ofício de traduzir.

Ao traduzir O Idiota, de Dostoiévski, você disse que uma das maiores preocupações do autor não era construir o Príncipe Míchkin como um boneco oco e vazio, mas dar a ele a densidade de um semilouco, meio santo. Como aplicar a arte à tradução sem ferir pressupostos de densidade?

A primeira obrigação do tradutor ao recriar a imagem de uma personagem é procurar penetrar o mais fundo possível em toda a sua interioridade, auscultar suas angústias, imergir nos desvãos da consciência (ou inconsciência). No caso específico de Míchkin, sabendo-o epiléptico, tive a preocupação de observar com o maior cuidado o efeito de um ataque de epilepsia sobre o seu comportamento e a sua linguagem. E o que percebi foi uma enorme quebra do fluxo natural do discurso nos momentos em que se avizinhava o ataque de epilepsia. Aí, a fala de Míchkin se torna sinuosa, descontínua, e aparentemente sem nexo. Ao mesmo tempo, procurei recriar um Míchkin num movimento pendular entre um discurso aqui meio desestruturado, ali prenhe de alta reflexão filosófica e um amor infindo pelo ser humano.

Em 2002, você recebeu o Prêmio Paulo Rónai de melhor tradução por Crime e Castigo, de Dostoiévski. Foi nesse trabalho que você aplicou pela primeira vez essa concepção de tradução como arte ou ela já o acompanha há mais tempo?

Venho aplicando essa concepção desde as minhas primeiras traduções de ficção, como Agosto de 1914, de Soljenítzin. É claro que foi a primeira experiência nesse gênero, evidentemente, com seus limites. O mesmo procedimento apliquei em O herói do nosso tempo, de Liérmontov e, de modo ainda mais acurado e consciente, em O navio branco, de Aitmátov, e O rumor do tempo, de Óssip Mandelstam. Quando comecei a traduzir Dostoiévski, minha concepção de tradução como arte já tinha passado por um processo de amadurecimento.

Um dos grandes desafios da tradução talvez seja levar um escritor como Guimarães Rosa e toda a sua densidade idiomática para outra língua. Existem autores ou idiomas que representem dificuldades maiores para quem traduz? É nessa hora que entra a arte?

Exatamente. Quanto mais difícil o autor, mais arte requer a tradução. Um dos autores mais difíceis de se traduzir do russo é Gógol, que misturou expressões próprias do ucraniano com formas do russo, além da “maldade” lingüística que impõe aos tradutores de Diário de um louco e, muito especialmente, O capote. Neste, a personagem fala de uma forma que dá a impressão de que a linguagem articulada ainda não havia nascido. Mas o maior de todos os desafios foi traduzir O rumor do tempo. Pela singularidade do processo narrativo e da própria linguagem, essa foi a minha tradução mais difícil. Dostoiévski é uma experimentação permanente. Cada romance seu traz desafios tremendos como o que acabo de enfrentar na tradução de Os demônios, que sairá agora, em junho, pela Editora 34. Uma das maiores dificuldades de traduzir Dostoiévski é recriar, sem estilizar nem amaneirar, momentos até toscos de sua linguagem. Essa recriação é indispensável. É isso que faz da tradução um trabalho artístico.

As críticas feitas a obras de Dostoiévski é que elas chegavam ao português por meio do francês, idioma que as tornaria suaves. Alguns idiomas suavizam ou tornam ásperas obras ou autores determinados? Como dar à obra uma nova língua sem ferir-lhe as características essenciais?

Creio que não é o idioma que suaviza ou torna ásperas obras ou autores, mas a concepção de tradução do tradutor. O francês tem a triste mania de amaneirar, suavizar autores russos, afrancesando-os de tal forma que eles perdem muito do que têm de peculiar. Essa prática se repetiu nas traduções de Dostoiévski diretamente do francês, feitas por Rosário Fusco, Raquel de Queirós e outros, nas quais encontramos excelentes textos em português, porém muito distantes da marca caracterológica da linguagem dostoievskiana. A tradução direta visa justamente evitar esses desvios estéticos no processo da tradução, que tornam os textos traduzidos estranhos à concepção de arte e linguagem do próprio Dostoiévski.

Quais os melhores tradutores do Brasil? E as obras mais bem traduzidas?

O Brasil teve e tem grandes tradutores. Eudoro de Souza, Paulo Rónai (ainda que húngaro!), Manuel Bandeira, Drummond, Mário Quintana, Haroldo de Campos, só para citar alguns dos que já se foram. Temos ainda Bóris Schnaidermann, Marcos Santa Rita, Ivan Junqueira, Lia Luft, Herberto Caro e Jenny Klabin Segall. Mais recentemente, Christine Röriig, com a tradução de Fausto zero, de Goethe, e Modesto Carone, com seu magistral trabalho com os textos de Kafka. Para avançarmos ainda mais, é preciso que a universidade brasileira, especialmente a pública, inclua a tradução em seu currículo e crie condições para formar tradutores em processos letivos especiais.