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Paulo Bezerra
Traduzir é uma arte
Murilo Gontijo
Paulo Bezerra: desafios da tradução
Foto: Foca Lisboa
A tradução de literatura, seja poesia ou prosa, é,
acima de tudo,arte. Para debater essa concepção, o Instituto
de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) trouxe à UFMG,
no dia 27 de maio, o professor Paulo Bezerra, da Universidade Federal Fluminense
(UFF). Agraciado com o prêmio Paulo Rónai pela tradução
de Crime e Castigo, de Dostoiévski, ele afirma que traduzir é
estabelecer diálogo entre culturas. Para ele, o tradutor penetra
na cultura do outro, a vivencia, apalpa os seus elementos, sente-os na sua
especificidade e os leva para a própria cultura, revestindo-os com
a forma que marca essa individualidade cultural, mas sem apagar as peculiaridades
do original. Nesta entrevista ao BOLETIM, Bezerra fala sobre os desafios
e especificidades do ofício de traduzir.
Ao traduzir O Idiota, de Dostoiévski,
você disse que uma das maiores preocupações do autor
não era construir o Príncipe Míchkin como um boneco
oco e vazio, mas dar a ele a densidade de um semilouco, meio santo. Como
aplicar a arte à tradução sem ferir pressupostos de
densidade?
A primeira obrigação do tradutor ao recriar a imagem de uma
personagem é procurar penetrar o mais fundo possível em toda
a sua interioridade, auscultar suas angústias, imergir nos desvãos
da consciência (ou inconsciência). No caso específico
de Míchkin, sabendo-o epiléptico, tive a preocupação
de observar com o maior cuidado o efeito de um ataque de epilepsia sobre
o seu comportamento e a sua linguagem. E o que percebi foi uma enorme quebra
do fluxo natural do discurso nos momentos em que se avizinhava o ataque
de epilepsia. Aí, a fala de Míchkin se torna sinuosa, descontínua,
e aparentemente sem nexo. Ao mesmo tempo, procurei recriar um Míchkin
num movimento pendular entre um discurso aqui meio desestruturado, ali prenhe
de alta reflexão filosófica e um amor infindo pelo ser humano.
Em 2002, você recebeu o Prêmio
Paulo Rónai de melhor tradução por Crime e Castigo,
de Dostoiévski. Foi nesse trabalho que você aplicou pela primeira
vez essa concepção de tradução como arte ou
ela já o acompanha há mais tempo?
Venho aplicando essa concepção desde as minhas primeiras traduções
de ficção, como Agosto de 1914, de Soljenítzin. É
claro que foi a primeira experiência nesse gênero, evidentemente,
com seus limites. O mesmo procedimento apliquei em O herói do nosso
tempo, de Liérmontov e, de modo ainda mais acurado e consciente,
em O navio branco, de Aitmátov, e O rumor do tempo, de Óssip
Mandelstam. Quando comecei a traduzir Dostoiévski, minha concepção
de tradução como arte já tinha passado por um processo
de amadurecimento.
Um dos grandes desafios da tradução
talvez seja levar um escritor como Guimarães Rosa e toda a sua densidade
idiomática para outra língua. Existem autores ou idiomas que
representem dificuldades maiores para quem traduz? É nessa hora que
entra a arte?
Exatamente. Quanto mais difícil o autor, mais arte requer a tradução.
Um dos autores mais difíceis de se traduzir do russo é Gógol,
que misturou expressões próprias do ucraniano com formas do
russo, além da “maldade” lingüística que
impõe aos tradutores de Diário de um louco e, muito especialmente,
O capote. Neste, a personagem fala de uma forma que dá a impressão
de que a linguagem articulada ainda não havia nascido. Mas o maior
de todos os desafios foi traduzir O rumor do tempo. Pela singularidade do
processo narrativo e da própria linguagem, essa foi a minha tradução
mais difícil. Dostoiévski é uma experimentação
permanente. Cada romance seu traz desafios tremendos como o que acabo de
enfrentar na tradução de Os demônios, que sairá
agora, em junho, pela Editora 34. Uma das maiores dificuldades de traduzir
Dostoiévski é recriar, sem estilizar nem amaneirar, momentos
até toscos de sua linguagem. Essa recriação é
indispensável. É isso que faz da tradução um
trabalho artístico.
As críticas feitas a obras
de Dostoiévski é que elas chegavam ao português por
meio do francês, idioma que as tornaria suaves. Alguns idiomas suavizam
ou tornam ásperas obras ou autores determinados? Como dar à
obra uma nova língua sem ferir-lhe as características essenciais?
Creio que não é o idioma que suaviza ou torna ásperas
obras ou autores, mas a concepção de tradução
do tradutor. O francês tem a triste mania de amaneirar, suavizar autores
russos, afrancesando-os de tal forma que eles perdem muito do que têm
de peculiar. Essa prática se repetiu nas traduções
de Dostoiévski diretamente do francês, feitas por Rosário
Fusco, Raquel de Queirós e outros, nas quais encontramos excelentes
textos em português, porém muito distantes da marca caracterológica
da linguagem dostoievskiana. A tradução direta visa justamente
evitar esses desvios estéticos no processo da tradução,
que tornam os textos traduzidos estranhos à concepção
de arte e linguagem do próprio Dostoiévski.
Quais os melhores tradutores do Brasil?
E as obras mais bem traduzidas?
O Brasil teve e tem grandes tradutores. Eudoro de Souza, Paulo Rónai
(ainda que húngaro!), Manuel Bandeira, Drummond, Mário Quintana,
Haroldo de Campos, só para citar alguns dos que já se foram.
Temos ainda Bóris Schnaidermann, Marcos Santa Rita, Ivan Junqueira,
Lia Luft, Herberto Caro e Jenny Klabin Segall. Mais recentemente, Christine
Röriig, com a tradução de Fausto zero, de Goethe, e Modesto
Carone, com seu magistral trabalho com os textos de Kafka. Para avançarmos
ainda mais, é preciso que a universidade brasileira, especialmente
a pública, inclua a tradução em seu currículo
e crie condições para formar tradutores em processos letivos
especiais.