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Nº 1463 - Ano 31 - 18.11.2004


/ Renato Emerson dos Santos

O benefício de ser negro



Renato dos Santos: impacto social das cotas
Foto: Foca Lisboa

uando instituiu, no Vestibular de 2003, o regime de cotas para negros, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) enfrentou desconfianças e resistências, lembra o professor Renato Emerson dos Santos, coordenador acadêmico do Programa Políticas da Cor do Laboratório de Políticas Públicas da instituição. Acostumada a discriminar um indivíduo pela cor, a sociedade viu-se diante do inusitado desafio de usá-la como critério para favorecê-lo. "Pela primeira vez na história do Brasil a condição de negro significou um benefício", afirma Renato dos Santos, em entrevista ao BOLETIM, concedida no dia 9 de novembro, quando foi realizado, na Faculdade de Educação, um seminário sobre ações afirmativas. O evento discutiu a experiência da Uerj e de outras universidades em favor da ampliação do acesso de negros ao ensino superior.

Qual o critério adotado para distinguir os alunos que concorrem às cotas?

A Uerj vale-se do mesmo sistema adotado pelo IBGE, para quem os negros representam a soma daqueles que se declaram pretos ou pardos. Também nos valemos da auto-declaração, usada para a construção das estatísticas oficiais.

Muitos críticos afirmam que, em um país mestiço como o Brasil, é difícil classificar quem é branco e quem é negro. Esse critério de auto-declaração tem gerado muitas críticas?

No primeiro vestibular, em 2003, houve críticas, mas, no segundo, não. Foi muito difícil classificar quem era negro no primeiro vestibular que selecionou candidatos pelo regime de cotas. Aquele momento foi um marco. Pela primeira vez na história do Brasil a condição de negro significou um benefício. A sociedade brasileira sempre soube distinguir o negro na hora de prejudicá-lo, mas até o advento das cotas nunca tinha discriminado para beneficiar.

A Uerj dispõe de estudos que permitam aferir o desempenho dos alunos beneficiados com cotas?

Existe sim e há certa controvérsia em relação a eles. Há diversas variáveis que podem definir a positividade ou negatividade do rendimento. Um estudo realizado no final do ano passado utilizou algumas variáveis, como índices de evasão e aprovação em todas as disciplinas e o coeficiente de rendimento total agregado dos alunos. Tal estudo revelou que o desempenho dos alunos cotistas era melhor que o dos não-cotistas. Esse ano, a nova gestão da Universidade resolveu optar pelo uso de outra variável, o índice de reprovação por nota. Dentro desse novo parâmetro, os alunos cotistas se saíram pior que os não-cotistas. Ou seja, a evasão é maior entre os não-cotistas, que abandonam mais as disciplinas e acabam reprovados por excesso de faltas. Já os cotistas podem ir mal na primeira prova, persistem e muitas vezes não conseguem se recuperar, sendo reprovados por nota. No geral, a reprovação entre os não-cotistas é maior que entre os cotistas. Na minha opinião, este critério de reprovação por nota adotado pela atual gestão da Universidade não é o melhor meio de aferir o desempenho dos estudantes cotistas.

Muitos grupos que se opõem à adoção de cotas temem pela queda da qualidade do ensino, já que, em tese, a instituição estaria recebendo alunos com formação inferior à de quem ingressa pelo vestibular puro e simples. A experiência da Uerj desmente ou confirma essa idéia?

Essa crítica parte de um raciocínio, comum na sociedade brasileira, que atribui o fracasso ao indivíduo, sem pensar na lógica de construção da instituição. Na verdade, a Universidade precisa transformar sua pedagogia e sua própria forma de se estruturar para acolher essas pessoas.

O que a Universidade tem feito para evitar a evasão dos alunos cotistas?

A administração da Uerj está reivindicando, junto ao governo do Rio de Janeiro, a adoção de uma política de assistência que ofereça bolsas e financie um restaurante para os alunos cotistas. Além disso, existem iniciativas pontuais de departamentos que estão modificando o currículo e implementando trabalhos de apoio pedagógico aos alunos. A Reitoria da Uerj também pensa em implantar um regime de reforço, principalmente na área de ciências exatas, para alunos matriculados em disciplinas que registram repetência muito elevada.

Como a comunidade universitária assimilou a idéia das cotas?

Num primeiro momento, houve resistência muito grande. Agora, as pessoas estão constatando que cotista não morde e não quebra. Temos situações de discriminação e de conflitos, mas são casos pontuais, como na Escola de Direito, uma das mais elitizadas do país. Mas achávamos que teríamos muito mais casos de discriminação, como ocorre em todos os lugares da sociedade _ com ou sem cotas.

As cotas são suficientes para corrigir as distorções que marcam o acesso da população negra ao ensino superior?

As ações não são excludentes, nenhuma política social isolada resolve os problemas. Mas acredito que as cotas produzirão, daqui a algum tempo, um impacto social extraordinário. As escolas passarão a contar com um contigente de professores negros que modificará o atual processo educacional. Teremos negros em lugares onde eles praticamente não existem. Teremos juízes negros, advogados negros e médicos negros nos hospitais públicos. Enfim, a médio e longo prazos, teremos um impacto social muito maior do que o produzido hoje com a entrada de negros em cursos universitários.