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Nº 1553 - Ano 33
23.10.2006

Entrevista / Carlos Antônio Leite Brandão

Com os olhos muito além do horizonte

Maurício Guilherme Silva Jr.

ais do que de equipamentos modernos e recursos vultosos, o conhecimento científico dito “avançado” alimenta-se de um novo olhar sobre os fenômenos. Segundo o professor Carlos Antônio Leite Brandão, diretor-presidente do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT), trata-se do saber “que está lá na frente, que investiga outros territórios, estabelece o primeiro contato com o outro e pode ser amigo ou inimigo”. Nesta entrevista ao BOLETIM, o pesquisador, que é arquiteto e tem atuação no meio teatral, definiu o conceito de olhar avançado e comentou o atual estágio da objetividade no universo da ciência.

O que significa ser avançado nos dias de hoje?

Foca Lisboa

Carlos Brandão: o avançado está no território desconhecido

É uma pergunta difícil de responder, porque à medida que a ciência avança, outras fronteiras são descobertas. De qualquer forma, creio que, em primeiro lugar, avançado é aquilo que está posto como desafio nos campos disciplinares científicos. É o conhecimento que está lá na frente, que investiga outros territórios, que estabelece o primeiro contato com o outro, pode ser inimigo ou amigo. Usando uma analogia militar, o avançado é aquilo que está em contato com o outro território, com o desafio. É o que está entre o que eu sei e o que eu não sei e quero saber. Em síntese: é tudo que está na fronteira do conhecimento.

O que caracteriza o conhecimento avançado, além de estar posicionado na fronteira de um território desconhecido?
O termo conhecimento significa nascimento. O conhecer é um co-nascer do sujeito com o objeto. O conhecimento é avançado porque muda o olhar do sujeito sobre as mesmas coisas que já estavam ali. Fazendo outra analogia, a Renascença, no século 15, não se marcou por um conhecimento novo. O saber já estava ali, assim como as ruínas. O que houve foi a aplicação de um novo olhar. Temos, portanto, uma segunda definição de avançado: trata-se de um novo olhar aplicado sobre as mesmas coisas que já existem. E acho que há uma terceira definição, que pode ser extraída do termo sapere, em latim, que significa tanto saber quanto sabor. Roland Barthes, no livro A aula, escreve que a vida do pesquisador tem três fases: na primeira, ele ensina aquilo que sabe; na segunda, ele dá aula daquilo que não sabe, ou seja, sobre o que vai pesquisar; já na terceira fase, percebe que é hora do desaprender, de decantar tudo o que sabe. É a hora em que o saber fica saboroso.

Como se consegue ser avançado em um país com poucos recursos destinados à ciência e tecnologia?
O avançado não está apenas no campo de ponta da tecnologia. Ele também se encontra neste novo olhar. Quando produzimos conteúdos avançados, que nos garantem projeção, é sinal de que o País incorporou, apropriou e fundiu outras culturas. Muitas vezes, os países da periferia podem lançar uma nova perspectiva sobre essa produção do saber. Afinal, hoje é avançado trabalhar com diversas culturas e temporalidades, trabalhar com estratos de culturas, de tempo, fundindo-os e relacionando-os. Quando montei Romeu e Julieta, com o grupo Galpão, misturei Shakeaspeare com Guimarães Rosa. Isso é ser avançado e só é possível em um país de periferia, pois os próprios ingleses nos disseram que há um peso, uma tradição tão complexa, que não conseguem “brincar” com a obra do grande dramaturgo. O fato de sermos um país periférico coloca-nos, portanto, mais perto da fronteira que do núcleo. É nesse lugar que pode surgir o avançado.

O conhecimento avançado é necessariamente transdisciplinar?
O conhecimento exigido pelo século 21 é transdisciplinar. Quem trabalha com genoma precisa manter uma interface com a computação, até para fazer as prototipias, os modelos. Os problemas da contemporaneidade – meio ambiente, cidades e violência, por exemplo – são extremamente complexos e devem ser tratados em torno de uma série de disciplinas reunidas. Trabalhar com o transdisciplinar é trabalhar o avançado. Mas, por outro lado, como encontro os limites da minha disciplina científica? Como descubro as fronteiras? Só alcanço essa fronteira se eu for especializado nela, se tiver algum domínio. Para resolver os problemas complexos do século 21, é preciso ser transdisciplinar, mas, ao mesmo tempo, deve-se dominar profundamente um campo científico, ao menos para saber os limites.

Como o senhor vê, hoje, a ciência produzida no mundo? Os interesses externos (políticos, econômicos e religiosos) têm prejudicado a “objetividade” da pesquisa acadêmica?
O limite da ciência concentra-se nos problemas complexos, para os quais ela não está preparada. Um desses pontos é a questão da objetividade. A partir do século 18, a objetividade na ciência foi apresentada como o paradigma do sujeito neutro. As universidades e seu pensamento científico também se estruturaram em função dessa objetividade. No século 21, já não se pode falar de objetividade para tratar temas como domínio do genoma. Afinal, existem fronteiras éticas e discussão de valores que caracterizam o que chamo de intersubjetividade. É justo que duas pessoas surdas escolham, através do código genético, ter um filho surdo? Hoje, a ciência pode ajudar a conceber um filho surdo, e os pais podem desejá-lo para seu conforto e sociabilidade. Mas isso seria justo com a criança? Em outro exemplo, lembremos das religiões que não admitem a transfusão de sangue. Neste caso, deixamos uma pessoa morrer por questões religiosas? Diante da complexidade dos problemas e do próprio avanço da ciência, a idéia de objetividade nos remete às fronteiras daquilo que envolve o afeto e os costumes.