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Nº 1598 - Ano 34
25.02.2008

1, 2, 3, 4... De quando o esclarecimento
escapa da Universidade

Daniel Arruda Martins* e Marco Aurélio Máximo Prado**

É consenso que a Universidade é uma instituição onde se localiza a consciência crítica da sociedade. É aqui que são desenvolvidas formas, metodologias e reflexões para a afirmativa do esclarecimento como um princípio da razão científica que futuramente estará à frente dos processos políticos e sociais de uma nação.

Dessa forma, fazer parte de uma universidade reconhecida como de excelência em pesquisa, ensino e extensão, como é o caso da UFMG, nos coloca numa posição privilegiada para pensar e colaborar com a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Tal privilégio pode ainda ser encarado como obrigação ou dever ético, tendo em vista os recursos públicos que sustentam o nosso fazer.

Vivemos o início de mais um período letivo. Para muitos, a hora de retomar trabalhos, projetos, pesquisas e aulas. Para outros, o momento de iniciar a concretização do sonho de ser estudante desta grande Universidade. Recebemos, sob a alcunha de “calouros”, os mais novos membros de nossa comunidade acadêmica. Ávidos pelo saber, chegam das mais diversas realidades sociais e econômicas, trazendo bagagens culturais distintas e abertos a um mundo de possibilidades. Cabe a nós, veteranos na academia, parcela significativa da responsabilidade por inseri-los nessa complexa rede de relações sociais que se estabelece concomitantemente à produção científica aqui desenvolvida. De que forma e com que consciência temos feito isso?

Em agosto de 2007 e em várias “semanas dos calouros” anteriores, era possível escutar, de qualquer ponto da Fafich, um grupo de calouros, monitorado por veteranos da UFMG, que, ao passar pela avenida principal do campus, gritava a plenos pulmões um bordão que agride agudamente os princípios democráticos de uma sociedade. Eles andavam em fila entoando na entrada do prédio: 1, 2, 3, 4, na Fafich só tem viado; 4, 3, 2, 1, eles dão pra qualquer um!

Esse desfile da razão não esclarecedora é tomado por muitos como uma piada simples e sem maiores conseqüências éticas, mas, quando analisada com um pouco de cuidado, revela-se uma violência simbólica das mais graves contra uma parcela da população que historicamente tem sido construída como naturalmente possuidora de menos direitos civis: os homossexuais.

Pode-se argumentar que esses jovens estudantes não tinham a menor noção da agressão que estavam cometendo, mas isso só agrava a urgência de discutir publicamente os direitos sociais dos homossexuais em nossa sociedade. A não-interpelação auto-reflexiva da afirmativa 1, 2, 3, 4, ... só expõe um sintoma acadêmico grave: o que a universidade tem a ver com os direitos humanos?

Esse acontecimento mostra que a discussão sobre o direito à diversidade sexual é ainda demasiadamente embrionária em nossa sociedade e o quanto o domínio público ainda legitima preconceitos sociais que já se mostram muito mais adiantados nos âmbitos legal e científico. Note-se que o Brasil é um dos países mais avançados no que diz respeito à consolidação de garantias legais, por meio de jurisprudências, sobre direitos homossexuais. Todavia, o fato relatado evidencia, acima de tudo, que a universidade e os universitários não têm sido capazes de acompanhar, incorporar e respeitar o desenvolvimento dos direitos humanos em nossa sociedade, pois utilizam de tal jocosidade para a afirmação de uma suposta identidade masculina.

É nesse sentido que sinalizamos para a necessidade de pensarmos a sociedade brasileira a partir de uma profunda análise do lugar que as formas de opressão social, incluindo as associadas à sexualidade, ocupam dentro de um projeto de nação. Buscamos abordar essas e outras questões nos trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania GLBT (NUH), instalado na Fafich a partir de recursos do Programa Brasil sem Homofobia, do Governo Federal.

Participam professores, graduandos e mestrandos das áreas de Comunicação, Ciência Política e Psicologia Social. Desde setembro do ano passado, estudantes de diversos cursos têm se reunido e promovido debates e palestras sobre questões ligadas à vivência da homossexualidade dentro da Universidade. Estes estudantes compõem o Grupo Universitário em Defesa da Diversidade Sexual (GUDDS). É do diálogo entre esses professores, pesquisadores, alunos e outros colaboradores que surgiu este artigo, cujo objetivo é estimular, na comunidade universitária, o debate sobre tais questões e contribuir para o despertar da consciência crítica de todos os que, em seu fazer acadêmico, têm colaborado, ainda que inconscientemente, para a reprodução de estruturas sociais de opressão.

De outro modo, a conivência com episódios como os já descritos podem nos obrigar a ouvir no futuro atrocidades como 1, 2, 3, 4, na Fafich só tem negros, ou 1, 2, 3, 4, na Fafich só tem pobres, ou, ainda, 1, 2, 3, 4, na Fafich só tem mulheres... Deixamos a cargo do leitor completar, a partir de dados históricos, os novos refrões que poderão emergir em torno de afirmações identitárias que, na esteira do atual autoritarismo legitimado, provocam a inferiorização de grupos sociais na tentativa de buscar o conforto com as proposições de lugares hegemônicos. Será que a universidade do século 21 está apta a produzir e transmitir conhecimentos capazes de colaborar com a emergência e consolidação dos novos direitos humanos?

* Mestrando do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, pesquisador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania GLBT (NUH) e integrante do Grupo Universitário em Defesa da
Diversidade Sexual (GUDDS)

** Professor do Departamento de Psicologia da UFMG e pesquisador do NUH

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