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Nº 1632 - Ano 35
03.11.2008

opiniao

Quando as pseudoteorias raciais visitam a UFMG

Maria Cristina Soares de Gouvêa* e
Nilma Lino Gomes**

A edição 1630 do BOLETIM noticiou a realização do seminário Resultados do Pisa e a perspectiva de ensino na América Latina, organizado pelo Laboratório de Diferenças Individuais do Departamento de Psicologia da UFMG e que teve como convidados especialistas brasileiros e estrangeiros. Entre estes, o pesquisador Charles Murray, Ph.D em Ciências Políticas.

Tal pesquisador foi entrevistado por dois periódicos de circulação nacional, Época e IstoÉ, aos quais afirmou que a miscigenação racial brasileira seria responsável por um suposto déficit intelectual da população. Tal afirmação, claramente racista, provoca-nos uma questão: por que este senhor é convidado pela UFMG, apresentado como especialista na avaliação do desempenho educacional?

Vejamos o currículo de Charles Murray. Em 1994, publicou o livro, imediatamente transformado em best-seller, The bell curve (A curva do sino). Ancorado numa série de pesquisas fundamentadas em dados estatísticos, o autor repetia o velho argumento, presente no campo científico desde o século 19, de que haveria uma correlação entre raça e cognição.

Este pressuposto, segundo o qual a raça branca constituiria o ápice da escala evolutiva enquanto a negra seria a mais rudimentar, fundamentou um sem-número de pesquisas antropométricas que buscavam comprová-lo. Com base na medição e comparação de diferentes caracteres anátomo-fisiológicos de indivíduos das duas raças, especialmente o tamanho/peso do cérebro, a chamada ciência da cranometria concluía haver uma inferioridade cognitiva das mulheres e indivíduos da raça negra, devido ao menor peso de seu cérebro. Esses estudos deram origem à eugenia, definida como “ciência” do aprimoramento das raças.

No início do século 20, a partir da criação dos testes de QI, a ciência supostamente encontrou o substrato capaz de sustentar a afirmação da superioridade cognitiva da raça branca. A inteligência poderia ser medida e comparada, não mais se recorrendo aos caracteres anátomo-fisiológicos, mas aos psicológicos, aferíveis nos testes psicométricos.

Tal teste, apesar das objeções do autor, Alfred Binet, foi amplamente utilizado no estabelecimento da correlação raça-cognição. Paralelamente, a ciência da eugenia transformou-se em política de Estado na Alemanha nazista, voltada para eliminação de indivíduos de raças tidas como inferiores.

O desenvolvimento de pesquisas e políticas de Estado defensoras das desigualdades raciais poderia constituir apenas um triste e trágico capítulo na história da ciência e sua transformação em ideologia. No entanto, no caso da questão racial, tal tema insiste em ressurgir, sempre sustentado pela realização de pesquisas supostamente fundadas em dados empíricos, que comprovariam finalmente a tese em questão.

É o que ocorre com Charles Murray. Por ocasião da publicação de sua obra, esta foi amplamente debatida e refutada nos meios acadêmicos. Entre outros, o eminente biólogo Stephen Jay Gould, em seu livro A falsa medida do homem (Martins Fontes, 2004), demonstrou o caráter não-científico do estudo de Murray, baseado no falseamento e manipulação dos dados estatísticos e no recurso a investigações obscuras desenvolvidas em institutos sem respeitabilidade acadêmica.

Charles Murray não tem vínculo com nenhuma instituição acadêmica respeitada, sendo pesquisador do American Enterprise Institute, órgão financiado por grupos conservadores norte-americanos. Seus estudos pseudocientíficos embasaram os cortes orçamentários das políticas sociais dos governos Reagan e Bush. Em seu último livro, Real education, ele defende a restrição à entrada na universidade de indivíduos que não demonstrem habilidades cognitivas complexas, aferíveis em testes de inteligência.

Parece-nos preocupante a vinda deste pesquisador à UFMG como convidado de um programa de pós-graduação. Ao acolhermos em nossa instituição um autor desacreditado no campo acadêmico, que não goza de autoridade científica, mas apenas visibilidade midiática, conferimos legitimidade às suas posições. Ao expor suas teorias pseudocientíficas explicitamente racistas na grande imprensa, sendo apresentado como convidado desta Universidade, nossa instituição é associada a tais posições, que certamente não contam com a adesão da imensa maioria de seus pesquisadores.

Especialmente no momento em que a UFMG decide iniciar uma política de inclusão social por meio de bônus para alunos oriundos de escola pública e autodeclarados negros, a propagação de teorias racistas na instituição toma uma dimensão maior. A Universidade tem um compromisso ético não só com a produção do conhecimento, mas, sobretudo, com a sociedade. A pluralidade e a liberdade de idéias são características da instituição e fazem parte da autonomia científica. Seu limite, porém, é a ética.

Não somente a ética da pesquisa científica, mas, também, a do tratamento dado aos sujeitos sociais e ao direito à diferença. A veiculação da reedição de pseudoteorias raciais já abolidas pela própria ciência, pela psicologia e pelo campo da cognição vai na contramão desse princípio. Acreditamos que a contribuição da ciência deve ser no sentido de emancipar a sociedade e não de reforçar estereótipos, constrangimentos e exclusão.

* Psicóloga, doutora em História da Educação, professora associada da Faculdade de Educação da UFMG e membro do Programa de Ações Afirmativas da UFMG

** Pedagoga, doutora em Antropologia, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG e membro do programa de Ações Afirmativas da UFMG

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