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Nº 1632 - Ano 35
03.11.2008

Freud explica?

Estudo da Psicologia mostra que cego sonha do mesmo modo com que percebe o mundo: sem imagens visuais

Paula Lanza

Freud
Freud criou o conceito de pulsão escópica

Como sonham os cegos? Uma pessoa cega possui pulsão escópica? Qual a função do divã para a técnica analítica quando o analista ou o paciente é cego? São essas as questões que orientaram a dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Fafich. Segundo a autora da pesquisa, Liliane Camargos, mestre em Teoria Psicanalítica, a idéia do estudo surgiu ainda na graduação, quando travou contato com a teoria psicanalítica freudiana e percebeu que vários de seus conceitos aplicados à interpretação de sonhos são exemplificados por imagens visuais.

“Lendo o livro A interpretação dos sonhos, comecei a me perguntar: será que essa teoria também se aplica aos sonhos de um cego? Freud não menciona o sonho cego, apenas metaforicamente. Ele oscila entre uma representação concreta e uma representação metafórica do aparelho psíquico”, argumenta Liliane Camargos. Para responder a essas questões, foram levantadas hipóteses e criadas propostas de aplicação dos conceitos teóricos e da prática ao caso das pessoas para as quais a visão e a memória perceptiva visual estão ausentes. Assim, o contraponto metodológico utilizado foi questionar esses conceitos e técnicas levando em consideração uma situação em que um dos personagens fosse deficiente visual.

Na prática

Filipe Chaves
Liliane Lopes
Liliane Camargos em seu consultório: sonho sem imagem

Para desenvolver essa teoria, a pesquisadora investigou o modo como sonha uma pessoa cega, a partir de entrevistas com pessoas com diferentes níveis de deficiência visual. “O que eu fiz primeiramente foi descrever esses sonhos no meu trabalho e depois aplicar os conceitos da psicanálise, usando como exemplo os sonhos cegos e não mais aqueles com imagens visuais”, explica. A partir das entrevistas e da idéia de que os sonhos utilizam-se do material perceptivo da memória para gerar seu resultado final, a pesquisadora concluiu que o sonho do cego tem a ver com o modo como ele percebe o ambiente acordado e como vivencia as situações em seu dia-a-dia. “Dependendo do grau de deficiência, a pessoa percebe o mundo sem imagens visuais; assim será o seu sonho, pois ele não cria percepção visual. Ele vai perceber as coisas no sonho assim como percebe acordado: com tato, olfato, paladar e audição”, completa a psicóloga.

Elaboração psíquica

Liliane Camargos explica que uma pessoa que enxergava normalmente, mas que perdeu a visão completamente ou a está perdendo, vai sonhar da maneira como vê o mundo na atualidade. Mesmo que os sonhos carreguem lembranças da época em que ainda enxergava, suas memórias visuais começam a desaparecer. “O sonho é um espaço privilegiado para a elaboração psíquica e de realização de um desejo inconsciente. Não faria sentido para essa pessoa sonhar de um jeito que ela não vê mais. Isso não faz parte mais da realidade dela”, analisa.

Outro aspecto abordado na dissertação diz respeito à pulsão escópica, conceito que Freud criou para designar o impulso “a ver e a ser visto”, aliado ao campo do prazer e do desejo. Liliane Camargos constatou que a pessoa cega tem, sim, pulsão escópica, pois se preocupa com o modo como é vista, “gosta de saber que a cor da calça está combinando com a da blusa, muitas vezes usa óculos escuros, pois sabe que seu olho é diferente”.

A terceira parte do estudo foi direcionada para a técnica psicanalítica, particularmente a técnica do divã, cujo objetivo é excluir o olhar do analista para o paciente e vice-versa, para que a visão não interfira nas elaborações do paciente e para que o analista não se preocupe com o feedback que ele produz sobre a fala do paciente. A pesquisadora concluiu que, na situação em que o último é cego, o divã não se faz tão necessário, mas quando o analista é cego, o divã continua sendo elemento essencial no consultório.

“Uma pessoa, quando chega ao consultório, já não vê o analista dela. Mas quando pensamos no inverso, o analista cego, sabemos que, com ou sem divã, ele não tem acesso visualmente às reações do paciente. Porém, quando ele usa o divã, o paciente também não o verá. Então esse elemento continua sendo importante, pois propicia uma equiparação visual”, avalia.

Segundo Liliane, a pesquisa pode facilitar o trabalho dos psicanalistas com esse público. Os sonhos são ferramentas importantes de auxílio na análise do paciente, pois são eles que revelam a relação da pessoa com o mundo e seus desejos inconscientes. Por isso, os psicanalistas se vêem diante de um novo desafio, visto que, ao longo da história da psicanálise, as imagens visuais dos sonhos sempre foram tidas como elementos de extrema importância para desvendar os mistérios da psique humana.


Dissertação: A psicanálise do olhar: do ver ao perder de vista nos sonhos, na pulsão escópica e na técnica psicanalítica
Autora: Liliane Camargos
Defesa: 9 de maio de 2008, junto ao mestrado em Teoria Psicanalítica da Fafich
Orientadora: professora Cassandra Pereira França, do Departamento de Psicologia da UFMG