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Nº 1649 - Ano 35
20.4.2009

opiniao

A liberdade de expressão e
a defesa da democracia

Ricardo de Lins e Horta*

Ninguém que conheça um pouco a História negaria que a liberdade de expressão é um dos sustentáculos mais preciosos da democracia. O direito de manifestar livremente o pensamento não é só uma garantia da diversidade e do respeito à individualidade, como também uma forma de cobrar, fiscalizar e contestar os governos. Não é à toa que nos regimes autoritários a imprensa livre é sempre uma das primeiras vítimas. As universidades, onde, por excelência, viceja o livre pensamento, também são visadas pelos algozes da democracia.

Foi com surpresa que a comunidade acadêmica da UFMG viu o jornal Estado de Minas estampar em sua primeira página, na edição de 29 de março, a manchete “Um atentado à democracia”, insinuando que a Universidade estaria tentando calar aquele que se diz “o grande jornal dos mineiros”. No dia seguinte, diversas autoridades e personalidades saíram em defesa do periódico, lamentando a conduta da instituição de ensino.

Há algo de muito equivocado nessa versão dos fatos, por dois motivos que merecem uma reflexão mais detida. O primeiro é que o propalado “atentado” à liberdade de expressão era de uma ordem judicial, emanada de um magistrado regularmente investido de seus poderes, com fundamento no direito de resposta, que é garantia constitucional. No caso, o Estado de Minas foi obrigado, pelo juiz de primeira instância, a publicar o direito de resposta da UFMG, após série de reportagens apontando supostas irregularidades na Instituição. Inicialmente, o periódico descumpriu a decisão, e em virtude disso foi-lhe atribuída multa diária de R$ 1 mil. Quando, por haver o jornal reiteradamente ignorado a ordem, a multa foi aumentada para R$ 100 mil, com a determinação de uso de força policial, se necessário – medida prevista nas nossas leis processuais –, o jornal recorreu ao Tribunal. A decisão foi revista por um desembargador. Não houve tribunal de exceção, arbitrariedade, nada que fosse além dos marcos da ordem constitucional vigente. Por que o jornal exibiu, numa página interna, o título “De volta à ditadura?” Ora, se tivéssemos mesmo retornado aos “anos de chumbo”, como alegaram, essa polêmica teria sido levada à Justiça e manchetada nos jornais?

Talvez os editores do jornal mineiro devam estudar um pouco mais de História para aprenderem o que a ditadura fez com os jornais verdadeiramente combativos da época, que não se curvaram ao arbítrio e lutaram pelas liberdades democráticas, como Última Hora, O Estado de São Paulo e Correio da Manhã. Ou apenas consultar seus arquivos e reler a manchete do dia seguinte ao golpe de 1964, em que o periódico dos Diários Associados anunciou: “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do estado e chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade (...)”.

Isso nos leva à segunda questão. O Estado de Minas não é o primeiro veículo a evocar o regime militar quando uma decisão judicial contraria os seus interesses. Não é preciso lembrar de casos como o da Escola de Base, ou o do Bar Bodega, para mostrar que a imprensa também comete excessos, e que, numa democracia, deve ser por eles responsabilizada. É por isso que a nossa lei maior assegura o direito de resposta.

A “Constituição Cidadã” garante ser “livre a manifestação do pensamento”, mas também assegura o “direito de resposta, proporcional ao agravo” (art. 5º, IV e V). Por um lado, determina que a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, vedando a censura prévia. Por outro, enfatiza que a própria Constituição pode limitar essa manifestação (art. 220). Além disso, traz dispositivos que visam à democratização da informação, solenemente ignorados pelas grandes empresas de jornalismo, tal como o que preconiza que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (art. 200, § 5º).

Não é de espantar que, quando o governo federal propôs a criação do Conselho Federal de Jornalismo, tantos jornais e revistas tenham reagido com ímpeto avassalador, construindo a versão de que o Estado estaria suprimindo a liberdade de imprensa. Ou que, durante a criação da TV Brasil, cumprindo a disposição constitucional de que os serviços de radiodifusão sonora e de imagens observarão “o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” (art. 223), tantos colunistas e articulistas da mídia privada tenham ironizado a iniciativa. Trata-se de uma reação compreensível do ponto de vista corporativista, mas inaceitável na medida em que dissimula como defesa da democracia aquilo que é tão somente interesse de mercado.

Quando um jornal de circulação nacional como o Estado de Minas escreve, de forma irrefletida, que uma ordem judicial é uma “volta à ditadura”, mais do que desrespeitar a memória daqueles que foram presos, torturados, mortos e desaparecidos por um regime sombrio, promove um ataque covarde à honra da UFMG e à legitimidade do Judiciário. É um desrespeito ao leitor, a exemplo do demonstrado por jornal paulista que, receoso de admitir abertamente as suas opções políticas, qualificou o regime militar de “ditabranda”.

A imprensa – que, no geral, deixou passar em branco os 45 anos do golpe militar, completados em 1º de abril – e a universidade precisam aprender a lidar com a herança de 1964. Tanto numa, quanto noutra, houve quem apoiasse o arbítrio e quem defendesse a democracia. E é em respeito à memória dos últimos que o regime ditatorial não deveria ser evocado em vão, como mero artifício retórico.

*Estudante do 10º período do curso de Direito da UFMG; ex-representante discente no Conselho Universitário (2006/2007)

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