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Nº 1660 - Ano 35
6.7.2009

opiniao

A queda da idolatria do diploma

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

“O fogo é mais antigo que o fogão”, lembra o músico Jorge Ben Jor, na canção Alcohol (1993), assim como a educação é mais antiga que a escolaridade, e o jornalismo, mais antigo que o diploma. É preciso ter consciência da ordem cronológica desses fatores para não fazer confusão sobre o processo histórico que os desencadeia. Coloco essas questões para discorrer sobre a decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu, no mês passado, a exigência do diploma para trabalhar como jornalista.

Com essa medida, o STF colaborou para a sociedade brasileira dar mais um passo significativo em nome da liberdade de expressão, ampliando a participação de todos os seus membros na imprensa, agora como potenciais jornalistas. Nesse sentido, foi oferecida à coletividade fundamentação legal de acesso aos processos informativos e opinativos nos jornais, tendo em vista garantir o exercício da horizontalidade e da diversidade discursivas tão necessárias ao livre circuito de fatos e comentários produzidos, divulgados e interpretados no campo jornalístico. A atuação jornalística não pode ser exclusividade de uma elite de diplomados. Muito menos de diplomados em um único curso.

O diploma não passa de um atestado de que o seu portador cursou o programa indicado e teria atendido a requisitos formais. O que não garante que o seu desempenho será satisfatório. Para certas atividades, faz sentido que a lei exija o diploma, pois sinaliza aos demais que o portador desse instrumento apresenta condições de prestar o serviço com qualidade e confiabilidade. Trata-se de profissões em que o erro tem consequências graves ou irreversíveis, e de serviços em que o contratante não está em condições de avaliar quem os presta. Nesses casos estão, por exemplo, médicos e pilotos.

Nos casos mais malignos, o diploma assegura a reserva de mercado, impedindo o trabalho de quem sabe, mas não tem o diploma. Machado de Assis não poderia ser jornalista se no tempo dele estivesse em vigor o Decreto-Lei 972/69, que exigia o diploma de jornalista para o exercício da atividade em questão. Sem diploma, Machado foi um dos nossos maiores jornalistas e um dos pioneiros da crítica da imprensa no Brasil. Atuou em vários jornais, de forma regular, entre 1859 e 1900. No artigo “O jornal e o livro”, publicado no Correio Mercantil, de 10 e 12/01/1859, Machado de Assis, ainda jovem, elaborou um conjunto de conceitos que até hoje vigora como ideal de jornalismo. Naquela oportunidade, ele definiu o jornal como “a verdadeira forma da república do pensamento”, “a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos”, “a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e o fogo das convicções”. Para que o jornalismo real estivesse à altura de seu papel emancipatório da inteligência coletiva, Machado acreditava que a imprensa deveria ser a “reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e de todos os talentos, onde se reflete, não a ideia de um homem, mas a ideia popular”.

Diante desses valores tão fundamentais destacados por Machado de Assis, percebe-se que o diploma ocupa papel secundário, o que não justifica, portanto, a sua convocação como requisito indispensável para o exercício do jornalismo. O patrulhamento ideológico presente no decreto-lei derrubado pelo STF contribuiu muito mais para estimular a “idolatria do diploma”, conforme advertiu o economista Cláudio de Moura Castro (Veja, 21/06/2006), do que para ampliar o acesso à expressão jornalística e a qualidade do papel social da imprensa. Em uma concepção mais ajuizada, o diploma é uma das consequências do processo formal de aprendizado, uma manifestação de reconhecimento institucional. O endeusamento do diploma na seara jornalística teve como efeito nefasto cultivar a vaidade e a fama dos seus detentores, dentro de uma perspectiva elitista, sendo, portanto, um dos fatores que prejudicaram a excelência de uma imprensa compromissada com o pleno exercício da liberdade de expressão, no que tange à promoção da diversidade no campo da enunciação jornalística e ao profundo exercício de enriquecimento da interioridade humana. Quem exerce dignamente a missão de jornalista, com ou sem diploma, jornalista é.

Faz-se necessário salientar que a decisão do STF oferece uma grande chance para revitalizar os cursos de jornalismo e as empresas jornalísticas, que poderão assessorar formados e não-formados a desempenhar jornalisticamente o seu papel, de forma livre e responsável, fornecendo a eles conhecimentos específicos indispensáveis. Dada a natureza democrática do jornalismo, os processos e as teorias de comunicação, os procedimentos de apuração de uma notícia, as estratégias de entrevista de uma fonte, os mecanismos de redação de um texto jornalístico, as técnicas de edição para meios impressos ou eletrônicos e demais procedimentos não podem ser patrimônio exclusivo de uma instância formal de comunicação, seja ela educacional ou profissional, devendo ser disseminados, tendo em vista a expansão quantitativa e qualitativa da função de jornalista em toda a sociedade. Nesse sentido, ressalto que a medida tomada pelo STF só surtirá o efeito desejado se vier acompanhada, estruturalmente, de um conjunto de reflexões e ações educativas que possa, desde a base, estimular a população para o exercício livre e responsável da prática jornalística.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG

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