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Nº 1668 - Ano 35
21.9.2009

opiniao

Uma gripe à espera de mais discussão*

**Washington Novaes

Com os presidentes Oscar Arias, da Costa Rica, e Álvaro Uribe, da Colômbia, além do chefe das Forças Armadas e dois ministros colombianos já atacados pela gripe suína, e o presidente da Bolívia, Evo Morales, recebendo tratamento preventivo – também se têm recomendado cuidados especiais ao presidente Lula, que com eles teve contatos a portas fechadas –, esse novo mal, que já era conhecido nos Estados Unidos em 1998 e se espalhou mais recentemente a partir do México, corre o risco de criar situação semelhante à vivida pela Europa no início do século 16, quando a sífilis se disseminou pelo continente.

Naquela ocasião, cada país dava à doença uma denominação que sugeria ser ela originária de um país rival – “mal francês”, “mal de Bordeaux”, “bexiga francesa” e “doença francesa” eram muito comuns, ao lado de “doença castelhana”, “mal napolitano” e “doença polonesa”, entre outras. Até ao continente americano a doença foi atribuída, numa versão que a considerava levada para a Europa por nove “nativos” da América que chegaram à Espanha.

Parecem pouco fundamentadas as versões de que se trata de uma gripe em nada mais grave que a gripe comum. Segundo a revista New Scientist (2 de maio), ela já fora detectada nos Estados Unidos em 1998, mas não houve cuidados suficientes. E enquanto a gripe comum costuma matar 500 mil pessoas por ano (0,2% a 0,5% dos infectados), a gripe suína até aqui tem matado de 0,3% a 1,5% das vítimas. E com a diferença de que não faz vítimas de morte principalmente entre os idosos, e sim na faixa de 15 a 54 anos. E ainda pode agravar-se.

Na América do Norte já houve mais de 100 mil casos e provoca reuniões até de dirigentes do setor da aviação, que discutem se o ambiente fechado e refrigerado dos aviões contribui para a disseminação. O que é certo é que obesos parecem mais propensos a ser atingidos, ao lado de hipertensos e pessoas com problemas pulmonares. Nos EUA, 50% das vítimas eram obesas (New Scientist, 18 de julho).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz-se preocupada com a alta taxa de disseminação, quatro vezes maior que a da gripe comum, assim como com a alta taxa de mortes , 2.100 mil pessoas em 209 mil casos (Estado de São Paulo, 31/8). E o número pode aumentar a partir de outubro, com a aproximação do inverno no Hemisfério Norte.

Na Cúpula de Assunção (28/8), o Mercosul e países associados defenderam a utilização de medicamentos dessa área sem pagar pelo uso de patentes a indústrias farmacêuticas, atendendo à emergência e à flexibilidade prevista nos acordos sobre propriedade industrial e nas regras da OMS – já que “vacinas antivirais e material de diagnóstico são bens públicos globais” e a gripe atinge 160 dos 193 países da OMS.

É um tema espinhoso, que volta e meia está nos jornais. Agora também porque o lobby das empresas tem pago viagens de deputados e senadores à Europa, na tentativa de conseguir apoio à ratificação, pelo Brasil, de tratado que permite o reconhecimento em qualquer país de uma marca registrada em outro (Agência Estado, 20/7).

O fato é que até aqui as empresas produtoras de vacinas não têm aceitado permitir a fabricação sem o pagamento de royalties. Algumas até anunciam a doação de vacinas a países mais pobres. Para que se tenha ideia do valor da questão, Thomas Lovejoy (ecólogo norte-americano) sempre lembra que só o valor do comércio de medicamentos em área próxima (derivados de plantas) no mundo supera US$ 200 bilhões anuais.

Enquanto a questão não se resolve, vale a pena retornar ao início deste artigo e à questão da sífilis, tratada com competência no livro Memórias de um cirurgião-barbeiro (editora Bertrand Brasil) pelo diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, Heitor Rosa. Escrito na forma de uma narrativa do cirurgião-barbeiro Gioacchino dalla Rosa, assistente do cientista Girolamo Fracastoro, o livro trata do drama da sífilis no continente europeu no início do século 16 e do combate liderado por Fracastoro, que, chamado pelo Vaticano, deu à doença até o nome – Syphilis sive morbus gallicus –, inspirado num pastor italiano, Sífilo. Na época, um terço dos parisienses portava a doença.

Fracastoro, nascido em 1483, já aos 19 anos era professor na Academia de Pádua, onde assimilou conhecimentos de Hipócrates, Galeno, Avicena, Copérnico e outros. Chamado pela Igreja, preocupada com a extensão do problema da sífilis, que já chegara também à Líbia, à Inglaterra e à Ásia e atingia até dignatários católicos de alto nível, começou a pesquisar. E chegou à conclusão de que os caminhos até ali seguidos – sangria, principalmente, e tratamentos com mercúrio, que tinham dramáticos efeitos secundários – não davam resultados; o caminho talvez fosse o pau de guáiaco, importado das Américas, e sua resina balsâmica.

Num dos momentos mais interessantes, o papa pede-lhe que recorra a seus conhecimentos de astronomia e astrologia para dizer que uma temida peste se aproximava de Trento, onde se realizava um concílio (Fracastoro era o médico oficial), de modo a poder transferir a segunda fase do conclave para outro lugar, longe da influência do imperador da Alemanha.
A história é oportuna para ressaltar que também na área médica as questões políticas podem influenciar muito. Estamos aí às voltas com uma pandemia muito mais grave que a gripe comum, mas insiste-se em que não há diferença sensível.

Uma doença que mata principalmente pessoas na força da idade (15 a 54 anos) e obesos (já temos 13% da população brasileira nessa condição), e não apenas idosos. Que já está no nível máximo classificado pela OMS e pode atingir dezenas de milhões de pessoas no mundo todo, até presidentes da República e ministros. E que não consegue um combate mais eficaz em parte por causa da posição de indústrias farmacêuticas. É preciso redirecionar a discussão.

*Artigo publicado em O Estado de São Paulo, de 11 de setembro de 2009
** Jornalista

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