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Nº 1698 - Ano 36
7.6.2010


Decifrando uma incógnita

Pesquisa dos Laboratórios de Neuropsicologia e de Genética da UFMG pode ajudar a desvendar causas e consequências da discalculia

Fernanda Cristo

Equação, matriz, raiz quadrada, análise combinatória, progressão, números complexos. Para muita gente, matemática é sinônimo de dor de cabeça. Mas para 6% da população, a inabilidade com a matéria vai além de uma simples falta de afinidade com os números. Estima-se que seja essa a parcela mundial que sofra de discalculia, transtorno de aprendizagem cujos efeitos e causas ainda não foram completamente desvendados pelos cientistas.

Traçar o perfil cognitivo de crianças e adolescentes que sofrem desse transtorno é um dos objetivos de pesquisa feita pelo Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), em parceria com o Laboratório de Genética Humana/ Médica do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), com colaboração do Serviço Especial de Genética do Hospital das Clínicas e do Centro de Tratamento e Reabilitação de Fissuras Labiopalatais e Deformidades Craniofaciais (Centrare), da PUC Minas.

No estudo, crianças de sete a 14 anos de escolas públicas e particulares de Belo Horizonte e Mariana são submetidas ao Teste de Desempenho Escolar. Aquelas que obtêm resultado abaixo de 25% no subteste de matemática são convidadas para uma segunda etapa de avaliação, em que passam por entrevista clínica, testes psicológicos e de inteligência, e têm o sangue coletado. Até agora 1.400 voluntários já passaram pela triagem. Desses, mais de 200 foram examinados na segunda fase. Segundo o coordenador do Laboratório de Neuropsicologia, Vitor Haase, a meta é que 500 crianças sejam submetidas aos testes psicológicos.

Uma terceira etapa da pesquisa será realizada pela equipe do Laboratório de Genética Humana do ICB, que examinará parte do genoma dos voluntários. Na conclusão dos trabalhos, os dois resultados serão comparados. “Genericamente, sabemos que as causas da discalculia são de ordem genética”, explica Haase. Segundo ele, falta identificar as áreas do genoma associadas ao transtorno.

Ponto de partida

As áreas cromossômicas a serem avaliadas no estudo relacionam-se às síndromes de Turner e Velocardiofacial (veja texto na página ao lado). Normalmente, quando o indivíduo apresenta alterações genéticas nessas regiões, desenvolve sintomas das duas doenças, que podem incluir a discalculia. “Os geneticistas caracterizaram as alterações genético-moleculares nessas síndromes e observaram que as dificuldades de aprendizagem da matemática faziam parte do fenótipo delas”, afirma Haase.

O professor diz que agora será feito o caminho inverso, com o objetivo de descobrir se algumas das crianças com dificuldade de aprendizagem em matemática têm as alterações genéticas descritas nas duas síndromes, sem que necessariamente sejam portadoras delas – ou apresentem apenas uma forma leve das doenças. “Queremos saber o quanto essas síndromes contribuem para o desenvolvimento da discalculia. Ambas podem apresentar um leque de sintomas, mas às vezes não há indício de que a criança seja portadora de uma delas”, afirma a professora Maria Raquel Carvalho, coordenadora do Laboratório de Genética Humana.

Isso poderia acontecer porque, como explica um dos mestrandos do Laboratório de Neuropsicologia, Pedro Pinheiro Chagas, possíveis alterações genéticas nessas regiões seriam responsáveis pela estruturação do córtex parietal, área do cérebro relacionada à representação numérica. “Podemos observar que a relação entre alterações genéticas e discalculia não é direta. Há um caminho, do ponto de vista do desenvolvimento, de maturação das regiões cerebrais”, completa Chagas. Todavia, essas não são as únicas regiões cromossômicas que podem estar relacionadas ao transtorno. “É provável que dezenas de outras áreas contribuam para que a pessoa tenha dificuldade de aprendizagem em matemática, mas é preciso começar por algum lugar”, argumenta Vitor Haase.

Segundo Maria Raquel Carvalho, o esclarecimento das causas da doença ocorrerá aos poucos. “Quando tirarmos as causas conhecidas, poderemos estudar todo o genoma para avaliar quais regiões causam discalculia”, resume.

Cálculo sem conta

A discalculia pode ter diversas causas. O transtorno, no entanto, não tem relação com problemas pedagógicos, educação deficiente, nem pode ser atribuído à falta de interesse do aluno pela matéria. “Ela é algo crônico, persistente no desenvolvimento e independente do estímulo”, pontua Pedro Pinheiro Chagas. A principal hipótese sobre o problema, formulada pelo francês Stanislas Dehaene, é de que a discalculia seria consequência de um déficit na representação numérica.

De acordo com essa teoria, há três formas de representação numérica distintas: a analógica, a simbólica e a verbal. A primeira seria algo inato, presente inclusive em animais. Graças a essa habilidade conseguimos julgar, por exemplo, se numa folha de papel a quantidade de pontos pretos corresponde ao dobro do número de pontos vermelhos, sem fazer qualquer tipo de conta. “É algo aproximativo. Se você colocar em uma vasilha um quilo de carne para um cachorro e meio quilo em outra, ele provavelmente vai em direção ao recipiente que tem mais. Ele não fez qualquer operação; simplesmente estima”, exemplifica o mestrando.

Já as duas outras formas de representação seriam construções sociais. “São maneiras de tornar algo impreciso e intuitivo em uma coisa exata e culturalmente aprendível”, define Pedro Chagas. A representação simbólica consiste em traduzir quantidades aproximadas em números, enquanto a verbal permite falar ou escrever um número.

Segundo esse modelo, os indivíduos com discalculia, ou pelo menos parte deles, teriam dificuldade elementar na representação de magnitudes, ou seja, na representação analógica. Mas, como lembra o mestrando, a matemática é uma atividade muito mais complexa que simplesmente estimar quantidades, por isso vários dos indivíduos com discalculia teriam também problemas em outras áreas: funções executivas, memórias de trabalho, capacidade de manter uma informação no cérebro durante a realização de uma operação, transcodificação, entre outras.

Um dos objetivos da pesquisa é identificar outros domínios cognitivos que podem ser afetados pelo transtorno, como atenção, processamento visoespacial e a linguagem. Por enquanto, o estudo não inclui um programa direto de reabilitação; dessa forma crianças que passam pelos exames e apresentam dificuldade de aprendizagem da matemática são encaminhadas a outras instituições. “Os dados disponíveis sobre o prognóstico mostram que essas dificuldades são crônicas, persistem, mas os indivíduos melhoram com atendimento e medidas psicopedagógicas”, destaca Vitor Haase. A pesquisa é financiada pela Fapemig, CNPq e Capes.

Algumas diferenças e uma semelhança:
a dificuldade com os números

A Síndrome Velocardiofacial se caracteriza por alterações no véu palatino. Em geral, os portadores da síndrome têm voz fanha e dificuldade para engolir, por isso se afogam ou engasgam com frequência. Também é comum que desenvolvam alergia e problemas psiquiátricos, como esquizofrenia, além da dificuldade de aprendizagem da matemática. Metade dos portadores tem retardo mental.

Diagnosticada apenas em mulheres, a Síndrome de Turner é caracterizada pela ausência ou perda de regiões de um dos cromossomos X. Entre as alterações morfológicas estão a baixa estatura, alterações esqueléticas, como tórax tipo barril, e excesso de pele no pescoço. Por não terem ovários, as portadoras da síndrome não produzem hormônios como estrógeno, o que causa atraso na puberdade e no desenvolvimento das caraterísticas sexuais secundárias. Apesar da inteligência normal, elas tendem, além da dificuldade com a matemática, a apresentar dificuldades visoespacial, para desenhar e de atenção.

Interferência de Rita da Glória em foto de Foca Lisboa
Pesquisadores
Pedro Chagas, Vitor Haase e Maria Raquel Carvalho: união da neuropsicologia com a genética para melhor compreender a discalculia