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Nº 1751 - Ano 37
3.10.2011

QUADRINHOS atômicos

Dissertação da História relaciona obra de Alan Moore ao contexto da Guerra Fria

Gabriella Praça

Muitas vezes relegadas à categoria de mero entretenimento, as histórias em quadrinhos também abordam questões “sérias”, atuando como potenciais instrumentos de questionamento e mobilização política. Na primeira dissertação do Programa de Pós-graduação em História da UFMG dedicada exclusivamente à temática, o pesquisador Márcio dos Santos Rodrigues relacionou a obra do roteirista de quadrinhos inglês Alan Moore, produzida na década de 1980, ao contexto da Guerra Fria.

O objetivo foi evidenciar que grande parte das representações que aparecem em suas histórias são socialmente construídas a partir de elementos do mundo real condensados em narrativa orientada para fins políticos. Watchmen e V de vingança – duas séries do autor já adaptadas para o cinema – foram objetos de análise, para identificação de como elas se apropriaram de repertórios culturais de seu tempo, reproduzindo os dilemas e paradoxos da Guerra Fria.

O terror do fim do mundo vivenciado na época aparece no universo ficcional criado pelo “mago de Northampton”, como Moore é conhecido, por meio de artifícios como o posicionamento político de personagens, ideias divulgadas nas capas das edições ou inserções publicitárias ao longo das histórias. “O medo do perigo atômico era o tempo todo retratado na obra dele”, observa Rodrigues, que defendeu sua dissertação em setembro.

“Em determinado capítulo de Watchmen, havia a publicidade de uma bala chamada ‘Mmeltowns’. O nome é derivado da palavra que em inglês significa ‘fusão nuclear’”, revela. Mais do que inserir elementos da conturbada conjuntura geopolítica da época em seus mundos ficcionais, Moore convocava os leitores à reflexão. Em outra passagem de Watchmen, por exemplo, uma mulher é esfaqueada e violentada na porta de seu apartamento, enquanto os vizinhos assistem a tudo sem tomar qualquer providência. Já em V de vingança há uma transmissão televisiva em que o locutor denuncia: “Foram vocês que colocaram no poder uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um sem-número de decisões catastróficas”. Para Rodrigues, o autor chama atenção do leitor para o fato de que qualquer decisão política é legitimada pela população. “Ele aponta para o público, e é nesse sentido que seus quadrinhos desempenham a função de um objeto político”, analisa o recém-mestre.

Artífice da ‘invasão britânica’

Alan Moore nasceu em 1953, na pequena cidade industrial de Northampton, localizada em East Midlands, na Inglaterra. Nas últimas três décadas, firmou-se como um dos principais autores no mundo das histórias em quadrinhos, sendo lembrado por ter introduzido no gênero elementos do cenário político dos anos 80. Foi um dos expoentes da chamada “invasão britânica” nos quadrinhos, iniciada na mesma década. Na ocasião, ao lado de outros roteiristas britânicos como Grant Morrison, Peter Milligan e Neil Gaiman, trabalhou em prol da valorização do gênero como manifestação cultural. Suas posições político-ideológicas puseram-no em choque com o mercado editorial de quadrinhos, com o qual mantinha relações cordiais no início de sua carreira. Prestes a completar 58 anos, o autor publica fora do circuito das grandes editoras. Algumas de suas obras já foram adaptadas para o cinema, embora ele se declare contrário à prática, exigindo que seu nome não figure nos créditos.

Personagens plurais

Anarquista, Moore viveu em um mundo bipolar dividido entre Estados Unidos e União Soviética sem defender nenhuma das duas potências. Aliás, seu trabalho buscava justamente diluir o maniqueísmo da Guerra Fria, desconstruindo a lógica de um conflito que não se pretendia efetivo, mas baseava-se no medo. “Em V de vingança, ele propôs uma mudança por meio do anarquismo”, acrescenta Rodrigues. Com vários substratos narrativos, as histórias de Moore apresentavam personagens de viés conservador ao lado de outros mais liberais, em uma grande variedade de posicionamentos. Embora não se possa falar em uma orientação hegemônica presente em sua obra, a contestação aparece em praticamente todas as suas produções ao longo da década de 80. O engajamento provém da concepção de Moore acerca desse tipo de narrativa, pois, para ele, “todo quadrinho é político”.

Embora frequentemente associados à literatura, os quadrinhos constituem uma forma de expressão com códigos próprios. Para Rodrigues, equiparar quadrinhos a literatura foi uma tentativa de pesquisadores de dar um verniz de nobreza às obras por meio de um rótulo que não era delas, já que as expressões literárias são socialmente mais aceitas. Alcunhas como “comics” (“cômicos”, em português), que é como esse tipo de gênero narrativo é chamado nos Estados Unidos, ou “funnies” (“engraçadinhos”), na Inglaterra, contribuíram para orientar a percepção de grande parte do público acerca dos quadrinhos. Para muitos, é ainda um gênero destinado exclusivamente ao divertimento.

Dissertação: Representações políticas da Guerra Fria: as Histórias em Quadrinhos de Alan Moore na década de 1980
Autor: Márcio dos Santos Rodrigues
Defesa: 13 de setembro, no Programa de Pós-gradução
em História da Fafich
Orientador: Rodrigo Patto Sá Motta