Entrevista

Um doutor na sala de TV

FLÁVIO DE ALMEIDA

Domingo, dia 12 de outubro. Por volta de 22h15, começa a exibição, no programa Fantástico da Rede Globo, de mais um documentário da viagem ao corpo humano, produção do inglês Channel 4 com imagens de alta definição e gráficos em 3D. O apresentador é Drauzio Varella, o médico de 65 anos que transformou a mídia em uma aliada da promoção da saúde.

Seu quadro no Fantástico, com duração aproximada de 15 minutos, é um dos líderes de audiência do programa. Mas quem o vê desenvolto diante das câmeras não imagina que o médico-apresentador chegou um dia a sentir certo desconforto com a exposição na mídia, ainda que a causa fosse nobre. “Os médicos tinham preconceito, e comigo não era diferente”, admite Varella.

O médico tomou gosto pelos meios de comunicação de massa ao perceber o potencial que eles têm de lidar com questões ligadas à saúde. Suas incursões começaram em 1986, com campanhas de prevenção à aids – ele foi um dos primeiros médicos brasileiros a lidar com casos da doença – veiculadas na rádio Jovem Pan AM e depois na 89 FM de São Paulo.

Varella transita por outras mídias, como a história em quadrinhos – supervisionou a edição da revista Vira-Lata, que circulou no presídio do Carandiru – e, a partir de sua experiência como voluntário na casa de detenção, escreveu o livro Estação Carandiru, lançado em 1999 e até hoje um sucesso de vendas, com direito a uma versão cinematográfica dirigida por Hector Babenco.

Nesta entrevista a DIVERSA, o médico aborda temas ligados à relação entre mídia e promoção da saúde e discute os avanços do Sistema Único de Saúde (SUS), sua experiência no tratamento de pacientes com aids, seus estudos de bioprospecção na Amazônia e a briga que comprou com a Igreja Católica, sempre refratária ao uso de preservativos e métodos anticoncepcionais.

Como o senhor “descobriu” a mídia?

Foi há cerca de 20 anos, quando um amigo da rádio Jovem Pan, o Fernando {o jornalista Fernando Vieira de Mello}, fez uma entrevista comigo sobre aids. Dois meses depois, encontrei um amigo na rua que disse ter ouvido no dia anterior uma entrevista minha na rádio. Achei estranho, pois ela fora concedida bem antes. Liguei para o Fernando e cobrei uma explicação. Ele justificou: “Dividi a entrevista em fragmentos e estou apresentando na programação”. Disse que ele deveria ter me consultado e que eu achava muito estranho entrar no rádio todos os dias. Ele respondeu: “Estamos prestando um serviço para a população, é uma informação de interesse público, todo mundo está elogiando”. Naquela época ninguém falava em aids. E assim começou, muito timidamente, mas aos poucos fui me envolvendo. Médico sério não fazia essas coisas. O que existia era médico aparecendo em programas de TV durante as tardes para apresentar clínicas de cirurgia plástica e de embelezamento. Havia muito preconceito. E eu também tinha. Mas comecei a me convencer de que é uma das funções da medicina.

Esse preconceito ainda existe?

Há médicos que acham que a medicina exige certo recolhimento, que deve ser praticada nos consultórios, evitando, ao máximo, uma exposição pessoal. Respeito muito essa posição. Mas imagino que a maioria dos médicos acredita que esta é uma visão equivocada, porque a medicina não foi feita para servir aos médicos e sim à sociedade. E a obrigação do profissional é tornar acessível à população o conhecimento que ele recebeu. Claro que tem também uma visão mais mesquinha, do sujeito que acha que você está fazendo isso para aparecer. Mas aí não dá para considerar. Se eu fico preocupado com esse tipo de interpretação, não faço nada na vida, vou ficar trancado em casa.

Vinte anos depois de começar a incursionar pelos meios de comunicação, como avalia a importância deles para a promoção da saúde?

Produzi uma série na TV Globo mostrando cinco fumantes que estavam em vias de deixar de fumar. Com essa série, eu fiz mais do que em toda a minha carreira de médico. Milhares de pessoas pararam de fumar por causa dela. Recebi inúmeros e-mails e até hoje encontro pessoas que se lembram da série. Desde o operário de macacão na rua até uma pessoa numa classe executiva de vôo internacional. O fumante – e eu já fumei – quer parar de fumar, mas falta a ele uma motivação. Tendo essa motivação, ele abandona o vício. Se já é uma festa quando o médico consegue que um único paciente pare de fumar, imagine quando mais pessoas alcançam esse objetivo.

Por causa da TV, o senhor se transformou num médico com milhões de pacientes. É o “Doutor Drauzio”, o médico da família brasileira. De que forma esse contato virtualizado muda a relação médico-paciente?

Eu sou oncologista e acho que, pela natureza da minha especialidade médica, o meu trabalho na TV não muda a relação com meus pacientes. O portador de câncer, que está na fronteira entre a vida e a morte, não se interessa em saber se seu médico aparece na TV; ele quer um profissional que lhe dê atenção. Eu tenho uma clínica e reservo a ela e a meus pacientes cerca de 80% do meu tempo de trabalho. À TV me dedico apenas a partir de sexta-feira e, esporadicamente, algum dia de semana à noite. Assisto entre 60 e 80 doentes por semana.

O senhor tem uma idéia da audiência de seu quadro no Fantástico?

É grande, alcançando muitas vezes o pico de audiência do programa. Mas não sou eu que consigo isso; esse sucesso deve-se ao tema. Há um interesse muito grande por esse tipo de informação. Informações não faltam, mas há uma carência por informações apresentadas em linguagem clara. Um dos problemas que especialistas enfrentam é o medo do patrulhamento por estarem supostamente empobrecendo a medicina. Isso é má compreensão do papel da televisão, que trabalha com informação pulverizada voltada para milhões e milhões de pessoas. O desafio é encontrar uma linguagem que seja compreensível sem perder o rigor científico.

E o senhor achou essa fórmula?

Eu não paro de aprender. Cada caso exige uma forma diferente de ser contado. O problema é que, em ciência, você tenta ser o mais completo possível, enquanto na televisão, trabalhando com 15 minutos, isso não é possível. Isso me obriga a selecionar a informação mais relevante. Sou obrigado a ser conciso e a escolher exatamente a parte mais importante.

Como o senhor vê a agressiva publicidade de medicamentos?

Esse é um debate internacional. O mundo inteiro está preocupado com esse assunto, que tem sido tratado por editoriais de revistas médicas. É uma questão com dois lados. De um lado, os laboratórios têm colaborado muito para o desenvolvimento da medicina e para o preparo dos médicos. A maioria dos médicos que viajam para o exterior tem suas despesas pagas pelos laboratórios. Hoje, encontro em congressos internacionais médicos recém-formados que não teriam condições de bancar com recursos próprios o custo de uma participação em eventos do gênero. Eu mesmo nunca recebi esse tipo de auxílio e até hoje arco com as despesas.

De qualquer forma, a medicina, e em especial a oncologia, avançou muito por causa dessas possibilidades. Mas não existe uma pressão direta dos laboratórios. Algo do tipo: “paguei sua viagem, você tem que aceitar meu remédio”. Isso não existe. O que os laboratórios esperam é que o médico indique uma droga ao perceber que ela age melhor em relação a certa doença. Por outro lado, a pressão da publicidade é algo terrível, principalmente nos Estados Unidos. Ela força os pacientes a pressionarem os médicos a prescreverem determinados medicamentos.

O senhor não acha que o Estado deveria intervir para coibir esse tipo de propaganda?

Sim. Especialmente nos casos em que se apregoam certas propriedades que os medicamentos não têm. Veja o caso da vitamina C para a gripe. Nenhum estudo comprovou que vitamina C serve para gripe e resfriado. Isso deveria ser proibido. Quanta gente gasta dinheiro com essa besteira. Não deveria existir propaganda de remédio, até porque não há medicamento sem efeito colateral. Além disso, acho que deveria haver restrições também às propagandas dirigidas aos médicos feitas em folhetos caríssimos.

O senhor foi um dos primeiros médicos brasileiros a trabalhar com pacientes com aids, numa época em que a doença ainda era chamada de “câncer gay” ou “peste gay”. Como foi esse trabalho?

Eu tratei os primeiros casos de aids aqui em São Paulo. Trabalhava no Hospital do Câncer e fui fazer um estágio em Nova York, no Memorial Hospital. E Nova York era o epicentro da epidemia. Eu vi os primeiros casos de Sarcoma de Kaposi, um tipo de tumor de pele que acomete pessoas com aids, muito comum na época. Quando voltei, eu era um dos poucos cancerologistas com experiência, ainda que pequena, com a doença. E acabei me envolvendo muito com a causa e com a questão da informação. Foi um processo muito interessante aqui no Brasil e no mundo inteiro. A aids trouxe à tona a situação dos homossexuais. A doença se disseminou porque eles viviam em guetos em todas as grandes cidades do mundo. Freqüentavam os mesmos lugares e um infectado acabava infectando os outros. Em lugares como São Paulo e Rio de Janeiro era muito difícil encontrar alguém que não tivesse perdido um namorado, um amigo ou alguém muito próximo. Pela primeira vez, e isso foi obra da aids, os homossexuais mostraram a sua cara. Atualmente, eles fazem manifestações e passeatas, mas na época isso não acontecia. E aí alguns médicos, poucos na verdade, também vieram a público dizer que alguma coisa precisava ser feita, que não era possível aceitar aquele quadro passivamente. O Brasil deu um grande salto no enfrentamento dessa questão. Foi o primeiro país a fazer uma distribuição massiva de medicamentos, mudando não só a sorte dos brasileiros, mas também a dos africanos. Hoje, na África, há muitas pessoas sendo tratadas, mas num passado recente ninguém admitia que isso fosse possível. Alegavam que não adiantava dar remédio para pobres, porque eles não tomavam. O exemplo brasileiro mostrou que isso era uma mistificação.

Há alguns anos, o senhor viu a morte de perto e teve que lutar muito para não sucumbir à febre amarela. Essa experiência alterou o seu pensamento em relação à morte e à própria vida?

Eu conto essa experiência no livro O médico doente. Quando cheguei ao final do livro, acabei constatando que não mudou nada. A não ser o fato de que passei a trabalhar menos. Achei que iria morrer e pensei sobre o que faltou fazer na vida. É lógico que eu quero viver e fazer outras coisas, mas acabei concluindo que, dentro do tempo que me coube viver, não deixei de fazer nada que fizesse diferença naquele momento.

O SUS completou 20 anos em 2008. Que avanços ele trouxe? O que falta para termos um atendimento efetivamente universal? Dinheiro? Gestão eficiente?

Quando o assunto é saúde pública no Brasil, a tendência é falar mal do sistema, do qual também sou um crítico. Com o dinheiro disponível – que não é muito –, a saúde pública poderia ser muito melhor. Falta dinheiro, mas a gestão é fundamental. Se sua casa é desorganizada, se suas finanças não estão em ordem, não há dinheiro que resolva. Sem gestão, qualquer dinheiro posto em algum lugar vai para um saco sem fundo. De todo modo, a situação melhorou. É só comparar o sistema hoje com o da época em que você e eu éramos crianças. Veja o meu caso. Certa vez, na infância, lá pelos idos de 1950, acordei com o olho inchado e meu pai me levou ao médico. Era uma nefrite. Quando voltei para casa, a molecada do Brás, bairro operário onde eu morava, me cercou para perguntar se os médicos davam mesmo aquelas injeções enormes nas crianças. O Brás fica a 20 minutos do centro de São Paulo. A capital paulista tinha a segunda maior população do país (na época o Rio de Janeiro era mais populoso), mas não havia pediatra para cuidar das crianças. Hoje, com todas as dificuldades, todas as crianças são vacinadas, as mães têm acesso a postos de saúde para atender os seus filhos. Uma mulher que mora na favela consegue ser atendida, ainda que isso demore ou que as condições de infra-estrutura não sejam das mais adequadas. Elas têm acesso a um pediatra que eu, na minha infância, não tive.

O Programa de Saúde da Família, por exemplo, alcança cerca de 94 milhões de pessoas...

Este é um dado impressionante. É muito fácil organizar a saúde na Escandinávia, que tem 20 milhões de habitantes, mais ou menos a população de São Paulo se contarmos a região metropolitana. Aqui é diferente. Ainda vivemos uma explosão demográfica entre os mais pobres – 47% das crianças que nascem no Brasil são da classe E. E isso ninguém comenta, porque não pega bem defender a distribuição de contraceptivos para meninos e meninas pobres. Enquanto a classe média tem um ou dois filhos, no máximo, a menina da periferia chega aos 25 anos com quatro filhos. Está condenada à miséria.

Ao defender a distribuição massiva de preservativos, o senhor, inclusive, já bateu de frente com a Igreja Católica...

O que a Igreja faz é um crime. Seus líderes deveriam ser processados. Estamos diante de uma epidemia incurável, e aí uma instituição faz propaganda – e mais do que isso, faz pressão – contra a camisinha. Que nome se dá a isso? É crime. Não é um erro qualquer. Amanhã a Igreja vai se arrepender. Daqui a cem anos vai pedir desculpas.

Mas a Igreja tem esse peso todo?

Tem. É lógico que dois jovens encostados num poste, num canto escuro de alguma cidade do Brasil, não vão deixar de transar porque a Igreja é contra. O que ocorre é o seguinte: se você chegar a um posto de saúde de qualquer lugar do Brasil e perguntar se lá tem camisinha, vão dizer que sim, porque o Ministério da Saúde se encarrega dessa distribuição. Mas quem busca a camisinha não precisa dela. São pessoas casadas, que têm relacionamento estável. A camisinha precisa ser distribuída massivamente, nos bares e boates. Isso não acontece. O prefeito vai querer criar caso com o padre ou com o bispo da região? Quem vai enfrentar essas figuras? A camisinha fica lá no posto como se fosse um remédio que as pessoas apanham para controlar a pressão. Não é assim que tem que ser feito. É preciso fazer uma distribuição mais agressiva, ir atrás dos adolescentes e daqueles que têm vida sexual mais ativa. E isso ninguém faz para não ficar mal com a Igreja. O interessante é que eu falo essas coisas, escrevo artigos nos jornais, e as lideranças da Igreja não respondem. Elas sabem que tenho razão, mas a estrutura da instituição não permite que ajam de outra forma. Você acha que os padres jovens, que estão na linha de frente, em contato direto com o povo, vendo as meninas engravidando, estão de acordo com essa diretriz da Igreja? Lógico que não. Só que não são eles que mandam.

Se fosse ministro da Saúde, que medidas tomaria para melhorar esse quadro?

Não, eu não seria.

Mas o senhor já foi convidado?

Sim, há uns três ou quatro anos e não aceitei. Nunca aceitei, porque eu seria um péssimo administrador. O melhor ministro da Saúde que já tivemos foi o Serra {o atual governador de São Paulo, José Serra}: ele ampliou o Programa Saúde da Família, proibiu propaganda de cigarro na televisão, coordenou a estruturação do programa de combate à aids, democratizou a produção de medicamentos genéricos. Não precisa ser médico para fazer essas coisas. É preciso ser administrador. E as pessoas confundem quando vêem um médico que se destaca em sua área; logo acham que ele deve ser ministro da Saúde.

Embora seja uma faceta menos conhecida do seu perfil profissional, o senhor realiza uma pesquisa de bioprospecção de plantas brasileiras na Amazônia. Qual o objetivo desses estudos?

Esse é um programa que estamos tocando há bastante tempo junto com a Universidade Paulista (Unip) e com o Hospital Sírio-Libânes, aqui em São Paulo. Coletamos plantas, preparamos extratos e depois os testamos contra linhagens de células tumorais malignas e bactérias resistentes a antibióticos. Já coletamos em torno de 2.200 extratos de plantas na região do Rio Negro. Mais de mil já foram testados e identificamos potencial farmacológico em 20 ou 30 deles. O Sírio-Libanês investiu um milhão de dólares em um laboratório, inaugurado em setembro, para fazer o fracionamento desses extratos e identificar a parte responsável pela atividade.

Esse estudo guarda alguma interlocução com o conhecimento que as comunidades da Amazônia detêm sobre essas plantas?

Não. Optamos por um método que recolhe plantas de algumas famílias que já demonstraram alguma atividade farmacológica. É um trabalho muito interessante. Estamos formando uma porção de pesquisadores. Trabalhamos com uma equipe de 10 a 12 profissionais e ela vai aumentar agora com a entrada do Sírio-Libanês no projeto.

E os resultados?

Acho que não vou vê-los enquanto for vivo. Mas acredito muito no potencial desses estudos, embora tudo seja ainda muito imprevisível.

 


Revista Diversa nº 16
Site desenvolvido pelo Núcleo Web do Centro de Comunicação da UFMG