Otávio Velho - Rei Nu

Os argumentos contra as cotas raciais me lembram daquele conto. Como se a declaração de que o rei está nu é que o desnudasse

As posições expressadas pelos opositores da instalação de um regime de cotas raciais na universidade pública brasileira me fizeram lembrar da história de Hans Christian Andersen em que um menino denuncia: “O rei está nu!”. Essa declaração de certo modo revela um pacto em que todos, mesmo não querendo reconhecer, sabem da verdade, mas pelo qual ela, a verdade, não pode ser enunciada. E quem a enuncia é que é acusado de pretender instaurar a ordem denunciada, já que esta não é assumida. Como se a declaração de que o rei está nu é que o desnudasse.

No caso, o que está no lugar da declaração de nudez é a reivindicação de cotas raciais. Uma declaração performática, por assim dizer, não sendo por outro motivo que os defensores das cotas perguntam aos seus opositores que alternativa apresentam: nesse terreno, só ações concretas têm eficácia como declaração.

A resposta dos que propõem mais recursos universalmente distribuídos não satisfaz: sendo essa distribuição universalista justamente o que não temos, mantém-se com isso uma epistemologia intelectualista (declarações “stricto sensu” que se esgotam em si mesmas) e linear. Uma linearidade que, por sua vez, não corresponde à natureza da vida social, feita de paradoxos.

À acusação de que ações afirmativas são contraditórias com princípios universalistas, deve-se responder que é isso mesmo, e que não pode ser de outra maneira num mundo real, que não se reduz a fórmulas abstratas.

Deus escreve certo por linhas tortas, e não há maior contradição do que a proposta -supostamente reconhecida- de que se responda ao ódio com amor. Só paradoxos como esse são capazes de romper impasses aparentemente inamovíveis.

No caso, só políticas desiguais para os desiguais são capazes de nos encaminhar na direção da igualdade. E não deixa de ser curioso que essa prática já se dê entre nós em outros terrenos, sem que jamais tenha sido denunciada com o furor com que as cotas raciais são combatidas (furor que, por si, já é uma contradeclaração).

O que, por sua vez, sugere que a reivindicação das cotas toca num ponto nevrálgico da nossa consciência coletiva e que, ao invés de ser só “politicamente correta”, denuncia, justamente, a correção política do suposto reconhecimento do outro que não se sustenta na hora em que somos interpelados diretamente, não “intelectualisticamente”.

Assim, o argumento de que se deveria começar pelo ensino fundamental ou pelo ensino médio, além de ignorar a importância de estabelecer modelos, é mais uma demonstração de linearidade e de tentativa de deslocar (para mais longe) a discussão. Como se se tratasse de uma lógica excludente (num duplo sentido, não só social e político) que estivesse em jogo.

A suposta inexistência biológica das raças é outro argumento não só intelectualista mas também cientificista. Primeiro, porque essa inexistência não é tão clara, como parece revelar a prática clínica no caso da anemia falciforme, que afetaria preferencialmente mulheres negras. E também porque esse não é o único caso: mesmo no terreno da genética, podem ser indicados casos intrigantes que apontam, no mínimo, para a complexidade da questão. Complexidade cujo reconhecimento deveria incluir o próprio questionamento da tendência atual de dar aos critérios genéticos a última palavra, em detrimento de outros, igualmente científicos.

Mas, obviamente, tentar desviar o assunto das cotas para uma discussão científica sobre a existência de raças é também parte de uma estratégia e de uma disputa corporativas que não devemos compartilhar, reveladora de uma disposição em que supostas verdades, válidas em âmbito restrito, parecem se tornar mais importantes que o bem-estar dos seres humanos concretos (já houve até declarações no sentido de restringir recursos para o tratamento da anemia falciforme!).

Deveríamos convencer as pessoas que são objeto de discriminação a abdicar, em seu nome e no das próximas gerações, de qualquer reivindicação até que a sociedade se convença de que tudo isso é ilusório? Ou, em vez disso, deveríamos considerar ser um cientificismo ultrapassado supor que as sociedades humanas devam se reger pelas categorias da ciência em detrimento de outros regimes de enunciação, como o da política?

Além de poder ser esse cientificismo, aí sim, uma ilusão (não necessariamente benfazeja) que não é digna da própria ciência, sobretudo da chamada ciência social. Esperemos que o tempo maior que se levará até a votação da matéria no Congresso permita, pelo menos, que os efeitos da declaração de que o rei está nu reverberem mais amplamente na parte da sociedade que ainda se encanta com a sua vestimenta invisível.

Otávio Velho, antropólogo, é professor aposentado de antropologia do Museu Nacional.

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, de 15 de setembro de 2006, no caderno principal, página 3, Tendências/Debates

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