José Tadeu Jorge - Reforma universitária e inclusão social

Com a turbulência política das últimas semanas, caiu numa espécie de limbo, como tudo o mais, o debate sobre o anteprojeto de reforma universitária em discussão já há alguns meses. Mas, no lapso de tempo em que o novo texto foi debatido, salvo raras vozes discordantes, em geral concluiu-se que, mesmo não sendo ainda o melhor dos mundos, a segunda versão do documento representa um avanço em relação à primeira.

O texto, mais enxuto, desidratou-se de um quarto de gordura e se livrou de ranços ideológicos como o de tentar submeter as universidades a conselhos sociais com poder deliberativo que, sobrepondo-se às instâncias representativas já consolidadas, solapariam sua legitimidade; isto além do viés utilitarista de uma política extensionista demasiado enfática, em prejuízo do compromisso maior com os valores acadêmicos da pesquisa e da educação superior.

A nova versão do anteprojeto também avança ao definir a obrigatoriedade de um terço de vagas noturnas nas universidades públicas – fator de inclusão dos mais eficazes –, seguindo o exemplo da Constituição paulista, que já o faz há mais de 15 anos, e ao preservar as prerrogativas dos conselhos estaduais de educação como órgãos reguladores das universidades estaduais – como a USP, a Unicamp e a Unesp –, evitando um centralismo indesejado e perigoso.

Ainda persistem, contudo, problemas como a tentativa de definir o conceito de autonomia universitária – ou seja, de restringi-lo –, quando a Constituição brasileira já dá conta desse tópico, de forma irretocável, no seu artigo 207. Por outro lado, falta incluir enfaticamente a atividade de pesquisa, ao lado do ensino e das atividades de extensão, entre as exigências básicas para que uma instituição de ensino superior seja efetivamente reconhecida como universidade.

Parece demagógica a reintrodução, a esta altura, do tema da eleição direta para reitor e vice-reitor, em substituição ao sistema de consultas indicativas, no âmbito do sistema federal de ensino superior. E soa tímido o dispositivo (artigo 57) que fixa um mínimo de 5% da verba de custeio para a assistência estudantil (bolsas, subsídio à alimentação, moradia, programas de inclusão, etc.), quando a experiência de universidades como a Unicamp mostra que o patamar ideal de gastos para essa finalidade deve oscilar em torno de 13% dos recursos destinados ao custeio.

O avanço mais notável, entretanto, é o abandono do imediatismo das chamadas cotas étnicas em troca de políticas de ação afirmativa que levem em conta a inclusão dos estudantes oriundos da escola pública, onde seguramente estão os negros, os indígenas e os pobres de um modo geral. Diz o texto que isso se fará segundo cronogramas e metas fixadas pelas universidades públicas, num prazo de dez anos, devendo-se alcançar até lá “o atendimento pleno dos critérios de proporção de, pelo menos 50% em todos os turnos e em todos os cursos de graduação, de estudantes egressos integralmente do ensino médio público”.

Sem deixar de lado a fragilidade do argumento que manda fixar um porcentual de inclusão, em vez de fazê-la por meio de ações concretas para melhorar os ensinos médio e fundamental, há uma certa justiça no propósito de estimular os alunos da escola pública a postular uma vaga em universidades mantidas pelo poder público. Também nesse sentido o texto deveria ser aprimorado. É possível encontrar formas de inclusão social sem depreciar a qualidade do ensino e do mérito acadêmico. A Unicamp começou a fazê-lo a partir de 2005 mediante um programa de ação afirmativa que não reproduz o sistema de reserva de vagas nem deixa de levar em conta a qualificação do estudante.

O programa da Unicamp, cujo princípio o governo paulista acaba de aplicar em seu sistema de faculdades tecnológicas, as Fatecs, consiste em atribuir um bônus de 30 pontos – numa média de 540 – ao vestibulando que tenha cursado todo o ensino médio em escola pública, e um bônus extra de 10 pontos aos candidatos autodeclarados negros ou indígenas que igualmente tenham vindo da escola pública. Esse bônus, longe de fazer tábula rasa do mérito acadêmico e sem estabelecer reserva de vaga, funciona como um critério de desempate – a favor do aluno da escola pública – num quadro de desempenhos freqüentemente equivalentes, mas cujas condições originárias são desiguais.

O sistema foi elaborado a partir de estudo de desempenho acadêmico que demonstrou que, dos alunos provenientes de escolas públicas e de escolas particulares aprovados em condições iguais no vestibular da Unicamp, os primeiros tiveram desempenho médio superior durante o curso de graduação. Os resultados ficaram acima do esperado já no primeiro ano de funcionamento do programa. O percentual de inscritos da escola pública evoluiu de 31,4% para 34,1% (um aumento de 8,6%), enquanto a taxa de aprovados foi ainda mais expressiva: subiu de 28% para 34,1%. Os negros e indígenas representam 15,7% dos matriculados da Unicamp em 2005, comparados aos 11,6% em 2004. No curso mais concorrido, o de Medicina, o número de matriculados egressos da escola pública mais que triplicou.

Encontrar formas apropriadas de realizar a inclusão social começa pela compreensão histórica das diferenças, mas pode ser também uma questão de método e de congruência. Assim, já que o Ministério da Educação teve a coragem de trocar o conceito de reserva de vagas por programas de ação afirmativa, o anteprojeto da reforma ganharia mais peso e consistência se o governo retirasse seu projeto de cotas étnicas do Congresso, onde continua tramitando e provocando inevitáveis e previsíveis desdobramentos nas assembléias legislativas, inclusive na de São Paulo.

José Tadeu Jorge é Reitor da Unicamp

Publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em 4 de julho de 2005

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