Diva Moreira - Quotas: debater é preciso

As divergências sobre as quotas oferecem uma boa oportunidade para se discutir os caminhos da democratização do terceiro grau para o Brasil. De um lado, encontram-se os professores, reitores e estudantes brancos que já estão cursando a universidade. Do lado de cá estamos nós, dos movimentos sociais negros, com poucos aliados numa sociedade que até hoje, salvo exceções, ainda cultua o mito da democracia racial. A reação às quotas encontra eco inclusive entre estudantes negros, em nome de quem tem-se defendido a iniciativa. Como se explica essa rejeição e até ridicularização da medida?

Em artigo para esse jornal em novembro passado, abordei o tema a partir dos argumentos dos opositores das quotas. Hoje, vou abordá-lo a partir da experiência americana, tão referida ao tratar-se do assunto. Vale dizer que desde 1978 as quotas foram vetadas pela Suprema Corte no famoso caso Regentes da Universidade da Califórnia x Bakke. E lá existiam muito mais condições operacionais de dar certo. Uma delas é a identidade racial definida por lei ao erigirem o sistema de segregação racial que vigorou no país até a década de 1960. Um oitavo de sangue negro alcançava o portador à categoria de negro. Qualquer documento da pessoa, do berço ao túmulo, registrava sua identidade racial, o que tornava inequívoco o critério para a aplicação de políticas que fossem beneficiar os afroamericanos.

No Brasil vigoraram a autoclassificação e a falácia de não se saber quem é negro na hora da designação de benefícios, mas se sabe perfeitamente bem quem o é, quando se trata de penalizar a população negra. Outra diferença dos Estados Unidos em relação ao Brasil: A população negra naquele país é menos de 13% da população total. E assim as políticas tinham uma clara intenção de promover os direitos dessa minoria, dentro do princípio de proteções externas contra uma maioria esmagadora que pode bloquear as oportunidades de uma minoria ter acesso a recursos, a benefícios, à suas instituições culturais, etc.

Outra questão: mesmo as políticas de ação afirmativa, que tiveram um escopo maior do que as políticas de quotas, vêm sofrendo críticas dos próprios negros, por ter beneficiado apenas frações da minoria dos afrodescendentes. Um argumento levantado por conservadores e progressistas são os indicadores sociais encontráveis entre a população negra americana, sobretudo a masculina, que demonstram que ela se encontra em posição igual à de países com um índice de desenvolvimento humano muito inferior ao dos EUA. Ou seja, são milhões de famílias negras vivendo abaixo da linha da pobreza. Mas a quotas funcionaram como um redutor de tensões raciais e permitiram a existência de um empresariado negro, de uma classe média e de uma intelectualidade negra, algo impensável no Brasil. Isso é importante? Sem dúvida, mas rigorosamente insuficiente se a gente adotar como perspectiva um cenário futuro que contemple todos os afrobrasileiros.

Finalmente, existe outra grande diferença de operacionalização que é o vestibular, um concurso público com regras transparentes, enquanto nos EUA existe o teste escolástico de aptidão, que de forma alguma tem isenção do vestibular. O que ocorreu na Universidade Federal do Rio de Janeiro: a existência de dois vestibulares com critérios distintos de aprovação e o somatório de reservas de vagas para alunos negros e alunos de escolas públicas, a esperteza de estudantes brancos se declarando pretos e pardos, tudo isso no meu entendimento conspira contra nossos anseios de se promover igualdade e justiça racial no Brasil.

O debate está polarizado não somente porque vamos ter que mexer na informal mas eficiente reserva de vagas para os estudantes brancos de classe média para cima, que sempre foi o público da universidade brasileira, mas também porque estamos copiando sem críticas o modelo americano. E fazemos isso em um momento em que lideranças e intelectuais negros, mais de 30 anos depois do início da implementação das políticas de ação afirmativa, se perguntam se essas foram as mais corretas medidas a serem tomadas. Isso porque, ao abismo racial que ainda persiste entre brancos e negros agregou-se o abismo social entre os negros ricos e de classe média e os amplos segmentos da população negra deixados para trás. Além das dificuldades de operacionalização das quotas, no contexto brasileiro, novos modelos de políticas públicas para a promoção da igualdade racial urgem ser pensadas, sem os quais continuaremos incapazes de promover amplas coalizões para a luta contra o racismo.

Diva Moreira - Colunista política e ativista negra

Publicado originalmente no Jornal Estado de Minas de 23 de maio 2003

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