Maria Cristina Soares de Gouvêa: Universidade e ideário meritocrático: continuando um debate

Minha manifestação neste espaço busca debater as posições apresentadas em número anterior sobre a adoção de uma política de cotas raciais na UFMG. Para tal, centro-me na problematização do conceito de mérito que sustenta, no artigo, a rejeição à adoção de uma política de ações afirmativas em nossa Universidade.

Antes, porém, deixe-me situar de onde falo: sou professora da Faculdade de Educação, branca, filha e neta de médicos e trabalho no Programa Ações Afirmativas na UFMG. Esse perfil ajuda a definir os dois lugares em que me posiciono: de um lado, minha origem social, que permitiu que, aos 17 anos, tivesse apenas que decidir que curso escolher na UFMG, meu lugar “natural” de formação. Por outro, minha inserção político-profissional, marcada pelo trabalho com alunos afro-descendentes que, após sucessivas tentativas, conseguiram entrar na universidade, mesmo tendo introjetado a visão de que “a UFMG não era para mim”, desnaturalizando o próprio percurso.

Tais trajetórias ilustram o conceito de mérito, conferindo visibilidade aos mecanismos sociais de produção e reprodução de um ideário que fundamenta a vida acadêmica e que a própria produção científica já desmontou, por meio das análises do sociólogo Pierre Bourdieu, na década de 60. Ele demonstrou que a educação, em suas diversas instâncias, não apenas produz e transmite conhecimento, mas reproduz a estrutura social.
Alguns estudantes, beneficiados por sua trajetória familiar e social, construíram uma representação socialmente sustentada de detentores de mérito intelectual que os qualificaria para o acesso às mais importantes instituições de ensino superior; outros, que Bourdieu define como “milagreiros”, o fizeram a custo de ruptura com um lugar social previamente definido por um processo de exclusão.

Nesta perspectiva, mérito é mais que um conceito, é uma representação social construída historicamente. É no final do século XIX que o termo mérito emerge com maior vigor. Na época, as pesquisas, fundadas em procedimentos ditos “científicos”, “provavam” que as habilidades intelectuais eram racialmente definidas, distribuídas desigualmente, havendo uma escala evolutiva desde a raça negra até a raça branca, esta tomada como ápice da cadeia evolutiva.

Posteriormente, a representação de mérito passou a referir-se não a diferenças raciais, mas individuais, expressas nos testes psicométricos da psicologia, “capazes” de aferir a inteligência. Tais representações “cientificamente sustentadas” definiam critérios de classificação e seleção da população escolar. Nessa perspectiva, a escola era compreendida como instituição voltada para a identificação da população de maior mérito intelectual. São essas representações que acabaram desmontadas pelas pesquisas de Bourdieu, o que não quer dizer que não estejam insistentemente presentes na vida cotidiana e no discurso dito acadêmico.
Debater a inclusão de setores da população na Universidade passa por qualificar a discussão, dialogando com o conhecimento produzido. Caso contrário, caímos na reprodução de visões do senso comum. Trazendo tal discussão para a inclusão das populações afro-descendentes, os dados são inequívocos ao diagnosticar a existência de uma defasagem no acesso e permanência desta população na escola, fator que persiste ao longo do tempo e indica a necessidade de políticas que corrijam tal distorção. Essa tem sido a posição do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão desvinculado de um recorte político e dotado de inequívoca competência técnica para sustentá-la.

A definição de estratégias de correção passa pela produção de políticas de ação afirmativa, não necessariamente cotas. Estas tiveram diferentes recortes e, nos EUA traduziram-se numa política, definida como temporária, de cotas raciais que, ao contrário de mostrarem-se fracassadas, são responsáveis, como aponta um significativo conjunto de pesquisas ali desenvolvidas, pela construção de uma classe média negra, processo que sem tal política levaria anos para realizar-se.

Aí chegamos ao último elemento da discussão: a Universidade. A produção científica nas áreas de sociologia e história do conhecimento demonstrou que a instituição não paira sobre a sociedade em que se insere; tampouco existe um conhecimento acima das condições sociais que o definem. A história da ciência constitui tanto a narrativa de um percurso de significativos avanços como de processos de restrição e exclusão de acesso ao conhecimento.

Mas voltemos à introdução desta discussão, ilustrando-a novamente. Setores das universidades brasileiras têm repetido que uma política de cotas rebaixaria a qualidade da Instituição. Na experiência acumulada pelo Programa de Ações Afirmativas da UFMG, em que os alunos vêm tendo desempenho qualificado, inserindo-se com facilidade nos diferentes programas de pós-graduação, o conceito de mérito como competência individual, fixa e objetivamente aferível, mostra-se insustentável. O mesmo vem ocorrendo em relação à produção dos alunos das instituições que adotaram a política de cotas.

Todos estes elementos indicam a necessidade de a UFMG sustentar sua posição não numa discussão impressionista, que tende a reproduzir representações sociais cientificamente infundadas, mas que dialogue com a produção sobre o tema e com as alternativas construídas por outras universidades. Também precisamos definir o papel político da Instituição: devemos apenas produzir e difundir o conhecimento ou construir alternativas para que ele seja democratizado?

* Professora da Faculdade de Educação da UFMG
Publicado originalmente no Boletim 1544, de 21 de agosto de 2006, na página 2 (Opinião).

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