José Goldemberg - As cotas nas universidades públicas

Uma das características mais perversas do subdesenvolvimento é a de copiar “modismos” que ocorrem nos países desenvolvidos sem entendê-los completamente e sem nenhum espírito crítico. Esse é o caso de um dos mais recentes deles, que é o estabelecimento de cotas para negros nas universidades públicas, que foram introduzidas em algumas universidades americanas há vários anos. Sucede que o sistema de ingresso em Universidades nos EUA é completamente diferente do critério das universidades públicas no Brasil.

Aqui, o acesso se dá através de exames vestibulares em que se respeita rigorosamente a classificação: todos têm igual oportunidade, como ocorre em qualquer concurso público ou licitação. Nos EUA não há, em geral, exames de ingresso e a escolha dos candidatos são feitas por um comitê de professores que analisa o currículo do candidato e as notas que obteve na escola primária e secundária. Os critérios de admissão não são objetivos, mas dependem da orientação que a escola adota. Em algumas delas, esportes são privilegiados e atletas promissores são preferidos. Em algumas outras, tenta-se garantir uma certa mistura entre grupos étnicos particularmente negros ou estudantes de famílias de nível de renda diferente, a fim de assegurar a presença dos mais pobres.

Isso é feito há décadas e gerou aos poucos a idéia de que existem ¨cotas¨ nessas Universidades. Algumas vezes, estudantes brancos brilhantes, que foram preteridos para dar lugar a negros, entraram com ações judiciais contra a universidade e o assunto foi até a Corte Suprema, que não avaliou o sistema de cotas, mas permitiu que as universidades fixassem seus próprios critérios para a escolha de estudantes. O que ocorre no Brasil é inteiramente diferente, e tenta-se forçar pela lei a abertura de cotas que garantam 20% de negros nas universidades. A primeira delas a fazê-lo foi a Universidade do Estado do RJ, mas a abertura tende a se estender por todo o país, com o apoio de reitores desavisados ou até de ministros da Educação e certos políticos sensíveis ao apelo demagógico da medida. Tudo isso é feito em nome da justiça social e para remediar a discriminação que sofreram no passado os negros.

Sucede que esse é o remédio errado para o problema maior a pobreza -, que atinge amplos setores da sociedade brasileira e em especial os negros: são eles que têm piores oportunidades de obter uma educação básica que lhes permita competir em igualdade de condições com os outros candidatos no vestibular. O problema, portanto, não é só que os negros sejam discriminados. O problema também é que são os pobres, e ambas as coisas precisam ser resolvidas juntas. Com as cotas no sistema educacional, especialmente de forma a assegurar aos pobres e negros condições de permanência e sucesso na escola (uma vez que o acesso está praticamente garantido), a reprovação e o abandono constituirão o verdadeiro gargalo para o ingresso na universidade, pois o percentual dos que logram concluir o ensino médio continuará a ser muito inferior ao dos brancos e orientais.

É possível e desejável criar ações afirmativas para remediar os problemas (pelo menos para os poucos que terminam o ensino médio), como cursos pré-vestibulares que elevem o nível dos candidatos mais pobres, incluindo os negros. Adotar cotas, pura e simplesmente, além da evidente dificuldade de distinguir brancos e negros num país com ampla miscigenação como o Brasil, é uma medida certeira para degradar o nível das universidades públicas e que não vai resolver séculos de discriminação econômica e racial.

Além do mais, estabelecer cotas pela legislação é perigoso e ilegal, pois contraria frontalmente a autonomia universitária, assegurada pela Constituição e pela LDB e que constitui uma garantia fundamental para a liberdade de ensino. Num país democrático, boas intenções não podem servir de pretexto para o desrespeito à lei. Mais ainda, se embarcarmos no caminho das cotas, por que não assegurá-las a outros grupos étnicos, sociais ou até religiosos? Copiar o presente modismo americano trará prejuízos irreversíveis às nossas melhores universidades e benefícios mínimos para corrigir iniqüidades sociais que devem ser combatidas nas suas origens, e não nos seus efeitos.

José Goldemberg é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP)
Publicado originalmente no Jornal Diário da Tarde - primeiro caderno, página 12, Opinião, de 10 de outubro de 2006.

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