O ensino de leitura como exercício de políticas de inclusão social

Marcelo Chiaretto (Professor Adjunto, COLTEC/FALE/UFMG)

Em uma democracia moderna, o professor de leitura costuma desempenhar um papel ambíguo. Por um lado, pode transformar interesses e discursos em vontade política legítima de comunidades. Por outro lado, tem interesses particulares ligados à sua própria identidade e formação que se refletem na sua leitura de mestre, necessária de se mostrar eficaz e indispensável aos seus alunos. Daí, é preciso reconhecer o valor político do ensino de leitura de textos. Se o professor continuar a dar aulas sobre a sua própria leitura, representando desse modo interesses particulares, sem que tenha a capacidade de lhes dar uma configuração política em vista de um coletivo que a tudo abarca, ele estará perdendo uma excelente oportunidade de exercer seu papel educativo de fomento às identidades, mantendo na marginalidade não somente ele próprio, mas sua leitura do mundo.

Entretanto, existe aquele poder exercido em nome do conjunto das comunidades, que transforma o professor em um ser político e as comunidades como se fossem efetivas associações de interesses ligados a um modo de vida ideal. Na leitura se experimentam formas de crer, constroem-se verdades, é como um laboratório aberto, público — apesar de ainda elitista, consumido a princípio por um restrito grupo social letrado. Por isso, é urgente a modificação do esquema escolar atual para algo que seja realmente representativo e participativo, isto é, algo possível a todos.

Mais que um desdobramento natural do princípio clássico da soberania popular, a representação, — nessa concepção, a participação ativa em sala de aula, — firma-se como um artifício pelo qual não apenas os poucos e bons falariam. Todos os “outros razoáveis” da mesma forma teriam espaço, uma vez que o professor, como um educador social, mediaria as falas, reformulando, recortando, exaltando ou restringindo. Tal mediação, na verdade, seria um filtro, cuja principal finalidade é a de reduzir os impactos possíveis da potência da “multidão” descontrolada sobre a ordem política estabelecida pelo professor.

Nessa concepção, o problema para o professor de leitura que faria de sua classe uma ágora no formato grego, isto é, uma arena política, são os interesses gerais — aqueles que correspondem ou contemplam a todos —— se chocando com os interesses particulares. A solução seria uma ação incessantemente comunicativa, fundada numa ânsia contumaz pelo convencimento todo o tempo. Os conflitos entre os alunos seriam firmados apenas no plano das aparências, não havendo assim fatos, porém interpretações e especulações abertas a todas as racionalidades. A política democrática que esse professor poderia professar em sala de aula estaria então acompanhada de uma cultura cívica democrática.

Transpondo para a escola, ou melhor, para a aula de leitura, a melhor postura para o professor é evitar o triunfo de um ponto de vista com o reconhecimento da magnitude da diversidade. Com a habilidade política de um legítimo estadista, o educador agirá com base na idéia de coerência a fim de intermediar leituras e projetos. Sua autoridade será então assegurada sem aviltamento, porém pela força do seu carisma, de sua determinação, de sua eficácia, evitando a arrogância suscitada pela erudição e pela figura do “leitor exemplar” a todo custo. Para o educador, seria fundamental diferenciar poder e potência no trabalho de conquista do corpo discente. Na confluência com Foucault, Deleuze informa que o poder sempre tem por objetivo separar as pessoas submetidas daquilo que elas podem realizar. A potência por sua vez é o prazer da conquista, não a conquista que leva à submissão das pessoas, mas aquela que tem “o mesmo sentido de quando se diz que um pintor conquistou uma cor”.

Estaria aí uma das grandes funções do professor ao trabalhar a leitura: dar espaço para a verbalização das variadas representações sociais e culturais. Dessa forma, pode-se dizer que o professor, sabendo compreender o jogo político presente no ato de se ensinar leituras, terá a perspectiva de exercer uma liderança propriamente política, no momento em que servir de mediador para demandas sociais e interesses diferentes. Ele não apenas se esforçaria por proporcionar a convivência entre culturas, mas também intentaria firmar um lugar de debates com objetivos específicos — considerando-se as liberdades e os encargos do leitor. Seriam discussões firmadas de modo responsável, aptas a promover posicionamentos políticos que poderão ser imaginados como conquistas de todas as sociedades democráticas que conformam a nação enquanto espaço público.

É bom pensar que na escola também não se poderão fundar hierarquias: o ensino da leitura de textos literários, por exemplo, deverá conviver com o ensino da leitura de textos informativos, publicitários, de manuais de instrução e outros, em um ambiente plurifacetado de contextos e suportes, conforme as demandas de uma sociedade democrática de tradutores, médicos, advogados, físicos, engenheiros, escritores, revisores, lingüistas, químicos e biólogos. São diferentes processos de leitura e, daí, diferentes modos de ensinar. Tratar da democracia na sala de aula é, da mesma maneira, tratar das diferenças de aptidão. É tratar, em suma, de incluir.

 

 

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