Éber Faioli |
Dois dos mais importantes documentaristas brasileiros da atualidade participaram, na manhã desta terça-feira, 19 de abril, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), de longo debate, promovido pelo Projeto República, do departamento de História da UFMG. A platéia que lotava o auditório Sônia Viegas pôde conversar com os cineastas João Moreira Salles e Eduardo Coutinho, diretores, respectivamente, dos filmes Entreatos e Peões. Os diretores discutiram questões diversas com o público, das especificidades da arte do documentário à trajetória e representação simbólica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Completavam a mesa de discussões os professores Heloísa Starling (mediadora) e Eliana Dutra, da História, e Juarez Guimarães, da Ciência Política. Em seu depoimento, Eliana Dutra propôs, aos cineastas, uma série de questões acerca do perfil do presidente Lula e sobre as especificidades do ofício documentarista na busca por narrar e “abarcar” a realidade captada pelas lentes: “O documentário, me parece, não deseja tornar-se produto de uma ilusão, mas expressão do real vivido”, ressaltou. Sobre os sujeitos “absorvidos” pelas câmeras de Entreatos e Peões, a professora comentou que tal gênero cinematográfico pretende exercer o mínimo de intervenção sobre os fatos. “No fundo, pergunto o que há de espontâneo e ficcional nos documentários. Qual a implicação sobre o efeito do real? O que há ali: uma verdade subjetiva?”, completou. "Imagens" de Lula Para o pesquisador, no entanto, permanece a dúvida. “Qual narrativa poderia unir as duas realidades? É evidente a dificuldade de se construir uma visão unilateral do presidente”, diz Guimarães, que enxerga os dois filmes como peças atuais da história brasileira. E opina: “Entreatos opõe e ressignifica Peões”. "Utopias concretas" João Moreira Salles foi ao encontro do pensamento de Coutinho. Segundo o diretor de Entreatos, há grande pressão sobre os documentaristas: “É como se o documentário precisasse mudar o mundo. A obra, no entanto, não pode ser utilitária”, disse. Na opinião de João Moreira Salles, a responsabilidade do cineasta deve concentrar-se na qualidade do filme. “Se busco controlar os efeitos a serem alcançados pelo que filmo, passo a trabalhar em um planfleto”, ressaltou. Muita além de respostas, o recorte da realidade, proposto pelo documentário, estaria, justamente, na possibilidade de promover a ambigüidade. Não se pretende chegar a respostas, mas incitar a reflexão. Por que fazer um documentário? Muitas vezes, têm-se em mente a idéia do registro histórico. “A maioria dos documentaristas deseja tornar-se testemunha da história”, definiu Salles. Ao invés dos grandes comícios, as câmeras preocuparam-se em absorver as discussões políticas, sociais e econômicas surgidas em pequenas reuniões ou em viagens de avião. “Meu desejo era realizar o documento de algo que nunca mais será visto”, diz. Em nenhum momento, houve interferência ou proibição, por parte de Lula ou de sua equipe, quanto ao uso das imagens. Salles teve acesso a tudo o que desejou. Encenação Eduardo Coutinho reforçou o pensamento de Salles ao relembrar o conceito de “auto-encenação”, em que os sujeitos, diante das câmeras, revelam, ou compõem, as noções que têm de si mesmos. Diante de tímidos entrevistados “anônimos”, personagens de boa parte da obra de Coutinho, o diretor confessou utilizar certa “mentirinha”: “Digo a eles que são as pessoas mais aptas a dizerem de sua própria vivência. No entanto, sabemos que, na verdade, sabemos muito pouco do que realmente somos”, completou. Preceitos éticos Quanto à relação entre vida pública e privada, Salles ressaltou que Entreatos não buscou investigar as relações pessoais de Lula. “Procurei acompanhar a história da campanha a partir de depoimentos e conversas de bastidores que diziam de assuntos e personagens sociais e políticos, como MST ou Lech Walesa. Não me interessava a vida afetiva de Luiz Inácio Lula da Silva”, ressaltou, lembrando que apenas uma vez esteve na casa do presidente durante as filmagens: “Acompanhei a oração realizada no dia do aniversário do Lula. Foi o único momento em que ele se sentiu constrangido. Para ele, a fé é algo absolutamente particular”.
Em seguida às palavras de Eliana Dutra, o professor Juarez Guimarães apresentou o texto Lula: Quem?, em que busca analisar, tendo como ponto de partida os documentários de João Moreira Salles e Eduardo Coutinho, as diversas “imagens” construídas sobre o atual presidente. De um lado, ressalta, os atores sociais criam a figura do “beberrão”, do “falastrão”, da decepção. De outro, estaria o “filho autêntico do Brasil”, possível realizador da Reforma Agrária, o líder mundial capaz de estimular a luta contra a fome.
Após os depoimentos, foi aberto o debate entre os cineastas e o público. O papel político-social do cinema abriu as discussões: qual seria a relação entre o fazer documentarista e o processo histórico-revolucionário? “Eu me atenho a utopias concretas. Trabalho na perspectiva do presente. Afinal, o passado é um fantasmo e o futuro, imprevisível”, comentou Eduardo Coutinho. Para ele, há pretensão exacerbada no cineasta que busca transformar o mundo. “Não busco resgatar questões milenares. Meu interesse está em fazer filmes”, completou.
No caso específico de Entreatos, que revela os bastidores da campanha política que, em 2002, levou o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República, o “documento histórico” é representado por nada menos que 170 horas de imagens brutas . Durante 30 dias, o cineasta, e sua equipe, acompanhou o ex-operário em sua via-crucis eleitoral.
Como, no entanto, captar, através das câmeras, um certo “Lula autêntico”, “real”, que não recorre à teatralização? “Durante todo o dia, encenamos vários personagens de nós mesmos. As lentes não buscam figuras assépticas. Muitas vezes, a encenação, natural, é muito mais interessante”, disse.
Ética e relação entre vida pública e privada foram temas também abordados no debate. Para João Moreira Salles, é preciso ter a noção do perigo de se utilizar a imagem individual como forma de promover causas universais. “Se o que se pretende com o documentário é lutar em prol de uma causa ampla, muitas vezes o cineasta provoca pequenos pecados. Como se a vida do indivíduo pudesse ser devassada em nome de causas coletivas”, diz. Também para Coutinho, os fins não justicam os meios: “Acho muito perigoso esse ideal leninista”, completou.