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Vendo dois garotos sentados em um muro próximo de sua casa, um escritor pergunta a eles o que estão fazendo. "Não estou fazendo nada", responde o primeiro. "Já eu, estou ajudando-o", completa o segundo. O escritor se chama Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, é filho de portugueses e nasceu em Moçambique. A moral da história é tão simples quanto a resposta dos garotos. "No Brasil e em Moçambique, se pode ser feliz só por preguiça", constata o convidado, dando início à palestra realizada na manhã desta terça-feira, dia 3 de julho, no auditório da reitoria. Para uma platéia atenta, que preencheu todo o espaço disponível do auditório, Mia Couto dá continuidade ao diálogo recém-estabelecido, com simpatia e descontração. "Brasil e Moçambique não apenas falam a mesma língua, mas sentem de forma semelhante o que não pode ser dito em nenhum idioma". Explica que uma espécie de saudade do que aconteceu, ou lamentação do que poderia ter acontecido, são sentimentos comuns a países de língua portuguesa. Teorias do Rosa Hoje, o escritor recorreu à obra do brasileiro Guimarães Rosa para explicar teorias que já lhe renderam prêmios de destaque na Literatura internacional. Segundo Couto, o grande trunfo de Rosa foi justamente não ter sido escritor, mas ter apenas visitado a literatura, deixando-se dissolver pelo mundo da oralidade. O moçambicano destaca a influência do escritor brasileiro sobre uma geração de autores de língua portuguesa e declara que Rosa instiga infinita sugestão em sua alma. O Sertão na África Na obra de Guimarães Rosa, o tempo não é vivido, mas sonhado. As coisas importantes da vida vão para além do tempo, libertam-se da ditadura da realidade. "Para se libertar da prisão que é a realidade, fechada com a chave da razão, é preciso desvalorizar suas paredes", comenta Mia Couto. Em contraste com estas paredes que abrigam a lógica da homogeneidade, O Sertão de Rosa surge como labirinto desordenador, que não permite a centralização do múltiplo. Para Couto, é impossível ter o retrato de uma nação em Moçambique. "Como costurar várias realidades tão dispersas?", indaga. A resposta pode vir da ponte que Rosa estabelece entre cultura urbana e rural. Segundo Mia Couto, a idéia de recriar, dentro da língua portuguesa, uma outra língua culturalmente remodelada, concretiza a possibilidade de mediação entre classes cultas e simples por meio da fala. "Somente renovando a língua se pode renovar o mundo", conclui. Parcerias
Jornalista e diretor da Agência de Informação de Moçambique, de 1976 a 1979, da revista Tempo, de 1979 a 1981, e do Jornal Notícias, de 1981 a 1985, ele abandonou a carreira em 1989, após concluir o curso de Biologia, com especialização em Ecologia.
Segundo Mia Couto, uma língua deve se libertar de suas amarras e usufruir o poder divino da palavra. Neste contexto, O Sertão de Guimarães Rosa seria um mundo construído na linguagem. "Ele (Guimarães Rosa) escreveu como se fosse o próprio sertão", afirma o moçambicano. Tal processo de construção de um lugar fantástico permitiu ao brasileiro alcançar o sentido sugerido pela palavra em si: ser-tão, existir-tanto.
Pouco antes do início da palestra, a vice-reitora Heloísa Starling anunciou a criação, na UFMG, do Centro de Estudos da Presença Africana no Brasil, que será coordenado pelo professor Eduardo França, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich). A vice-reitora comentou ainda o possível lançamento de alguma obra do escritor Moçambicano pela Editora UFMG. "Conversamos sobre isso com o Mia Couto e, segundo ele, a possibilidade é grande".