Anos heróicos: Medicina foi invadida no mesmo dia da Sorbonne

Ajax Pinto Ferreira *

O ano de 1968 se tornou um grande marco histórico. Houve grandes efervescências sociais e políticas em todo o mundo. O Brasil vivia sob a égide da ditadura militar. Eram freqüentes as manifestações de rua como passeatas e comícios-relâmpagos. Ocorriam também movimentos dentro dos prédios da Universidade. Por várias vezes a Faculdade de Medicina foi sitiada pelas polícias civil e militar.

Os embates entre estudantes e polícia eram freqüentes e por consequência havia muitos alunos presos.

Tomou-se a iniciativa de se reunir com os diretores das unidades de ensino para fazer alguma coisa em favor dos alunos presos. Os alunos da Faculdade de Engenharia se reuniram com seu diretor, o professor Cássio Pinto, solicitando medidas de defesa para os alunos presos.

Alunos da Faculdade de Direito se reuniram com seu diretor, o professor Lourival Vilella, com a mesma finalidade. Em ambas as situações houve diálogo tranqüilo. Foi esclarecido aos alunos que o país vivia em regime de excepcionalidade, sem as garantias plenas do Estado de Direito, porém, dentro do possível, seriam tomadas medidas em favor dos prisioneiros.

No dia 3 de maio de1968, sexta-feira, havia movimentação dos estudantes de medicina em frente a Faculdade, com pichações de ônibus. Isso provocou a presença das polícias militar e civil. O professor Versiani, diretor da Faculdade de Medicina, foi procurado por uma comissão de alunos para discutir o problema dos alunos daquela unidade presos, como já havia acontecido nas faculdades de Engenharia e de Direito.

Ele se fechou para qualquer diálogo. Não quis conversa. Quando tentou abandonar o prédio foi impedido pelos alunos. Voltou para Diretoria. A partir daí, se estabeleceu o impasse. O aparato militar defronte a faculdade foi reforçado. Carteiras foram empilhadas na entrada do prédio. Foi montada a barricada.
Estavam dentro da faculdade os professores Ângelo Machado, Rangel, Fatini, Peres e Oromar Moreira. A tensão crescia. O professor Amilcar Viana Martins, catedrático de parasitologia, sempre alinhado com idéias progressistas, tinha ótimo trânsito com os alunos. O diretor Versiani apelou ao professor Amilcar para intermediar uma solução. Este foi chamado de sua casa e se fez presente.

Reunimo-nos no saguão da faculdade. O professor Amilcar falou que a violência já estava caracterizada, portanto, ele julgava ser hora de encerrar as ações, abandonar o prédio da faculdade, pois ele temia que uma invasão propiciasse um massacre de nós, estudantes.

Junto de nós estava João Batista Mares Guia, líder estudantil e aluno de sociologia, Orador inflamado, ex-presidente da União Estadual dos Estudante, este toma a palavra e fala que nós não podíamos nos curvar diante de tanta arbitrariedade. Tinha que ser mantida a ocupação da faculdade. O diretor não podia simplesmente virar as costas para a situação.

Foi realizada uma assembléia. A proposta de manter a ocupação venceu por estreita margem. A barricada foi reforçada. Após cerca de duas horas de tensão, seguiu-se a invasão da faculdade, no mesmo dia que, na França, a Sorbonne foi invadida. Soldados corriam gritando para porta. Os vidros foram quebrados, carteiras amontoadas desmoronavam. Explodiam bombas. Gás lacrimogênio se espalhava. O diretor foi retirado através da escada Magirus do Corpo de Bombeiros. Vinte e sete estudantes ficaram entrincheirados no quarto andar em uma sala da bioquímica. Lá passaram a noite.

Outro professor muito entrosado com os alunos, Carlos Diniz, tentou encontrar uma saída para este grupo. Foi em vão. O diretor Versiani chamou a polícia para prendê-los. Neste grupo estava o presidente do diretório acadêmico. As aulas foram suspensas. As dependências do DA interditadas. Assim que se reiniciaram as aulas, continuaram os protestos sob a forma de vaias na entrada da faculdade ao diretor e aos professores Oromar Moreira e Rangel. Durante várias semanas bombas juninas explodiram dentro do prédio. Eram lançadas pelo vão da escada. Esse bombardeio causou grande desconforto ao diretor, pois os petardos explodiam próximos de sua sala.

Foi instaurado inquérito na faculdade. Os designados para o interrogatório foram os professores Hilton Rocha, Oswaldo Costa e Jaime Neves. Nenhum aluno foi punido. O diretor Versiani não teve apoio da Congregação e nem do Conselho Universitário.

Os alunos que formaram em 1968, ao se apresentarem ao exército, tiveram no documento de apresentação a observação que ali fez constar o diretor: “Participou de movimento contra o diretor da faculdade”. Ao Diretor ficou a marca da incompetência para administrar aquela crise.

* Professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG