Sem água, 6,6 milhões de crianças brasileiras são expulsas da sala de aula
Falta de saneamento básico em escolas periféricas provoca atraso escolar de dois anos em média; especialistas analisam o fenômeno em reportagem da Rádio UFMG Educativa
Por Ruleandson do Carmo
A falta de saneamento básico segue sendo um dos principais obstáculos ao acesso à educação no Brasil. Em diversas regiões, a ausência de água potável, coleta de esgoto e infraestrutura mínima provoca impactos que vão muito além da saúde: afetam a frequência escolar e comprometem o desenvolvimento de milhares de crianças. A história do pequeno Pietro Fagundes, de dois anos, aluno da rede pública de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ilustra o drama vivido por estudantes e familiares do país inteiro. “Em julho, a escola informou às 10h que não teria aula no período da tarde, e os alunos da manhã deveriam ser buscados. Não houve abastecimento de água e, por isso, cancelaram tudo. Não tínhamos com quem deixar nossos filhos”, conta a mãe, Tainara Fagundes, auxiliar administrativa. Ela faz um apelo: “Espero que futuramente as crianças não percam aula por conta do saneamento básico, que elas devem ter e têm o direito de ter”.
Segundo levantamento do Instituto Trata Brasil, Pietro não está só: 6,6 milhões de crianças de até seis anos de idade deixam de frequentar creches, escolas e atividades sociais por causa de problemas provocados pela ausência de saneamento básico adequado. A precariedade dos serviços de água e esgoto atinge, principalmente, famílias de baixa renda, que enfrentam mais barreiras para acessar direitos fundamentais. “Nunca uma criança de uma classe econômica favorecida, em uma região bem amparada pelo Estado, vai deixar de estudar por um desses motivos”, aponta a doutora em Educação pela UFMG Aleluia Heringer, educadora há mais de 40 anos, com experiência em escolas da rede privada, na região Sul da capital mineira.
Em Belo Horizonte, realidades distintas convivem lado a lado: a poucos quilômetros de bairros nobres, com acesso regular ao abastecimento, crianças de uma das maiores favelas mineiras, o Aglomerado da Serra, lidam com a falta até de banheiro em casa e chegam a se ausentar das aulas “três, quatro dias, porque não têm água em casa suficiente para tomar banho”, explica a professora da rede pública belo-horizontina Marileide Lopes, doutora em Educação pela UFMG.
Os impactos para estudantes, como as crianças e adolescentes das salas de aula de Marileide, são severos: o Instituto Trata Brasil estima um atraso escolar médio de dois anos entre as crianças que enfrentam dificuldades de acesso ao saneamento. O médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa, fundador do Projeto Manuelzão da UFMG, lembra que a situação compromete não apenas a frequência, mas também a saúde das crianças. Segundo ele, “a falta de saneamento provoca doenças de pele e intestinais e favorece a proliferação de mosquitos transmissores da dengue. Isso derruba a qualidade de vida”.
‘Definidor de quem vive e de quem morre’
A falta de saneamento é também uma questão de justiça social. Estudo do Instituto de Água e Saneamento, feito com base no Censo Escolar 2023, mostrou que um terço dos estudantes de escolas públicas enfrentam ao menos um problema de acesso ao saneamento; as crianças, em sua maioria, são negras. Aleluia Heringer é categórica: “O acesso ao saneamento básico é um definidor de quem vive e de quem morre. A pandemia de covid-19 nos ensinou isso, mas parece que ainda não aprendemos”. Há 15 anos, o acesso à água potável e ao saneamento foi definido como direito humano fundamental pela Organização das Nações Unidas. “Esse não é um problema complexo de se resolver. Precisa de vontade política, de pressão social para que entre na pauta de governos e também de melhor distribuição de renda, pois somente com melhores salários todas as pessoas terão melhor saneamento básico”, defende Apolo Heringer.
Notas
Em notas à reportagem, as prefeituras de Belo Horizonte e de Contagem e a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) reafirmaram o compromisso de universalizar o acesso à água e de garantir o abastecimento das escolas. Mas, enquanto a torneira da desigualdade social seguir aberta no país, milhões de crianças, como Pietro, continuarão a perder aulas e oportunidades de ascensão.
Reportagem em áudio
A reportagem completa está disponível nas principais plataformas sonoras, como Spotify e SoundCloud. Ela foi produzida pelo jornalista Ruleandson do Carmo, em colaboração com os estudantes de jornalismo da UFMG Isabela Fernandes e Hugo Reis. A sonoplastia é de Cláudio Zazá.
Ficha técnica
Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo, Hugo Reis, Isabela Fernandes
Edição de texto e de conteúdo: Ruleandson do Carmo
Sonoplastia e edição de áudio: Cláudio Zazá
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