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Farmacologia das palavras

Pesquisadores e artistas celebram legado de ‘Drummond farmacêutico’

Evento explorou interseções entre ciência, sensibilidade e criação literária na obra do poeta itabirano, que completaria, neste ano, 100 anos de formado no curso de farmácia da UFMG

Por Matheus Espíndola

Odilon Esteves na leitura dramática ‘Drummond e a pharmácia: 100 anos de uma formatura’
Foto: Raphaella Dias | UFMG

Em cerimônia ocorrida na sexta-feira (7), que marcou o centenário de formatura do poeta Carlos Drummon de Andrade no curso de Farmácia, professores, pesquisadores, artistas e ex-alunos revisitaram o legado artístico do poeta itabirano sob o prisma de sua formação acadêmica.

No debate Drummond: entre a farmácia e a poesia, os professores Sérgio Alcides Pereira e Roberto Alexandre do Carmo, ambos da Faculdade de Letras, e a professora Maria José das Graças Lima, pesquisadora da trajetória do escritor, exploraram as interseções entre ciência, sensibilidade e criação literária que caracterizam sua obra. 

Pianetti: Farmácia como primeiro laboratório da sensibilidade drummondiana
Foto: Raphaella Dias | UFMG

A mediação foi feita pelo professor Gerson Pianetti, emérito da UFMG e ex-diretor da unidade, que abriu o debate lembrando que Minas Gerais tem uma tradição de escritores oriundos de outros campos do saber – Guimarães Rosa, Pedro Nava, Abgar Renault –, sugerindo que a Farmácia, em vez de um desvio, figurou como o primeiro laboratório da sensibilidade drummondiana.

‘Fazendeiro do ar’
Maria José das Graças apresentou uma exposição detalhada da trajetória formativa de Carlos Drummond de Andrade, enfatizando os traços de questionamento intelectual que já se manifestavam desde a juventude. Ela relembrou episódios marcantes de sua vida estudantil, como a expulsão de um colégio por “insubordinação mental”. Fatos como esse, segundo a professora, revelam o impulso autônomo e provocador que permeou a obra drummondiana. Ela destacou a trajetória do escritor que, mesmo cursando Farmácia com rigor, percebeu-se deslocado dessa vocação – um “fazendeiro do ar”, nas palavras da palestrante, que se distanciava tanto da vida rural quanto da prática farmacêutica em busca da liberdade literária.

A pesquisadora propôs uma leitura interpretativa do discurso de formatura de Drummond, que ela definiu como um “não discurso”. Para ela, o texto revela simultaneamente o cumprimento de uma formalidade e a negação de si mesmo. Ao se retratar como “homem de laboratório, e não de tribuna”, o escritor, para a professora, reveste-se de uma dissimulação poética: Drummond empregava a oratória para desvelar a própria literatura que ele fingia rejeitar. Ao citar uma entrevista em que o poeta confessa ter fugido do trabalho rural e da prática farmacêutica para “cuidar das nuvens no exercício da literatura”, Maria José concluiu que toda a sua obra repousa sobre essa ambiguidade fundamental – um jogo permanente entre dever e desejo.

Por sua vez, Sérgio Alcides comparou a construção dos versos drummondianos à fórmula de um “comprimido imaginário”: uma reunião de substâncias que, em vez de curar o corpo, visam atenuar as dores existenciais. Essa metáfora serviu de ponto de partida para o professor discutir a potência terapêutica da arte, que não oferece remédios definitivos, mas alimenta a consciência, o cuidado e o enfrentamento da própria condição humana.

Ele apresentou uma leitura interpretativa do texto Especulações em torno da palavra homem, utilizando-o como eixo para refletir sobre a fragilidade e a profundidade da existência. Ao percorrer questões como “o que é o homem?”, “por que morre o homem?” e “por que vive o homem?”, o professor sustentou que a poesia mantém o ser humano em diálogo com seus próprios limites. Para Sérgio Alcides, a dimensão interrogativa da poesia drummondiana é o que confere a ela seu caráter de resistência – uma “pomada metafórica” que, mesmo sem eliminar a dor, convida ao gesto contínuo de cuidar-se e de pensar a existência.

Durante sua fala, Roberto Alexandre avançou para uma leitura simbólica da expressão “homem de laboratório”. Para ele, a passagem do poeta pela Faculdade de Farmácia funcionou como um verdadeiro laboratório intelectual, em que observação, experimentação e curiosidade científica se transfiguraram em impulso criativo. O professor relacionou a trajetória de Drummond ao momento de ebulição cultural e histórica do país, caracterizado por contradições entre o moderno e o arcaico, o local e o cosmopolita. Em sua análise, a poesia drummondiana emergiu como forma de conhecimento que sintetiza imaginação e reflexão crítica sobre a identidade brasileira.

Sandra Goulart e a diretora da Faculdade de Farmácia, Ana Paula Mota, com a gravura ‘De Minas, vejo o mundo’, inspirada em versos do poeta

Símbolo
A reitora Sandra Goulart Almeida ressaltou a relevância do poeta para a cultura brasileira e para a história da Universidade. Ao entregar à diretora da unidade uma gravura intitulada De Minas, vejo o mundo – inspirada em versos de Drummond e marcada pelas cores amarelo e alaranjado que remetem à Farmácia –, Sandra Goulart sublinhou a dimensão simbólica do gesto: “Carlos Drummond de Andrade está marcado não apenas na história da Faculdade de Farmácia, da UFMG e de Minas Gerais, mas no mundo também”, afirmou.

A reitora observou que a obra do poeta, traduzida em diversos idiomas, é reconhecida internacionalmente e frequentemente apresentada como símbolo da Universidade em visitas e intercâmbios com instituições estrangeiras. “É uma pequena homenagem da UFMG a um dos mais importantes modernistas do Brasil, que é da nossa Universidade e uma grande inspiração para todos nós”, disse.

Ao relacionar a homenagem ao ciclo de atividades do centenário da UFMG, cujo tema é Universidade e Democracia, Sandra Goulart destacou a atualidade do pensamento drummondiano. Segundo ela, celebrar Drummond é reafirmar a crítica sutil e persistente à opressão e o compromisso com o Estado Democrático de Direito – valores que, nas palavras da reitora, “ainda precisamos defender nos tempos atuais, para nossa enorme surpresa”. Encerrando a fala, Sandra citou Adélia Prado para lembrar a permanência da obra do poeta: “Como diz Adélia, o que a memória ama fica eterno. E Drummond será sempre eterno nos nossos corações”.

Raquel Vilela: ciência e poesia buscam a cura
Foto: Raphaella Dias | UFMG

Ciência como poesia
A professora Raquel Virgínia Rocha Vilela, do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Farmácia, refletiu sobre o motivo pelo qual Carlos Drummond de Andrade persistira até a conclusão do curso de Farmácia, já que nunca exerceria a profissão. “O que ele procurava? O que o prendeu até o final dessa jornada? Acredito que escolhas, sejam elas quais forem, nunca são por acaso. Existe um núcleo sentimental que nos leva a fazê-lo”, provocou.

A professora explicou que, para Drummond, a formação farmacêutica foi mais do que uma obrigação ou um desvio imposto, funcionando como laboratório poético e existencial. A professora afirmou que Drummond “aprendeu que toda ciência também é uma forma de poesia. Ambas buscam sua cura, uma do corpo, a outra da alma.” Essa perspectiva revelou o curso de Farmácia como um espaço de experimentação e autoconhecimento, onde o poeta descobriu um sentido que ultrapassa a simples prática profissional.

Ironia e desajuste
O ator Odilon Esteves apresentou a leitura dramática Drummond e a pharmácia: 100 anos de uma formatura, performance que entrelaçou poesia, memória e teatro para revisitar a juventude do poeta na antiga Escola de Farmácia e Odontologia de Belo Horizonte.

O artista conduziu a plateia por um percurso que começou na indecisão do jovem Drummond diante das expectativas familiares e sociais, atravessou sua formação como farmacêutico e culminou na descoberta da palavra como destino. Ele interpretou trechos de poemas como A consciência suja e José, além de excertos de cartas trocadas entre o escritor e o amigo Amorim, colega de turma e proprietário de farmácias. Odilon costurou os textos com comentários e reflexões sobre a tensão entre a ciência e a criação poética, tema que, segundo ele, Drummond enfrentou “com humor, lucidez e certo espanto”.

A leitura também recuperou o discurso de formatura de 1925, no qual Drummond, então orador da turma, declarava preferir “ser um homem de laboratório, e não de tribuna”. Odilon interpretou esse trecho como uma antecipação da ironia e do desajuste que mais tarde marcariam a obra drummondiana: “Ali já estava o embrião do cronista e do poeta que transformaria o fracasso em matéria-prima de beleza”, comentou.

A cerimônia contou ainda com o lançamento do documentário Drummond: a farmacologia das palavras, produzido pela TV UFMG. O filme recupera a trajetória acadêmica de Carlos Drummond de Andrade, entre 1923 e 1925, e mostra como essa experiência influenciou sua formação intelectual e sua obra literária. O documentário apresenta registros históricos, imagens de arquivo e leituras de poemas que revelam o olhar crítico e sensível do escritor sobre a ciência, a educação e a vida universitária. A equipe valeu-se de entrevistas, da documentação reunida no Centro de Memória da Faculdade de Farmácia e esteve em Itabira, terra natal do poeta, lugar central e recorrente em sua obra.

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