Francia Márquez propõe ‘decolonizar o saber’ e reforçar protagonismo negro na produção do conhecimento
Vice-presidenta da Colômbia fez conferência na UFMG na qual defendeu a valorização das epistemes africanas e a transformação estrutural nas universidades para enfrentar o racismo e as desigualdades históricas
Por Matheus Espíndola
Repensar a universidade com base nas contribuições de povos africanos e afrodescendentes é passo essencial para construir sociedades mais justas e plurais. A defesa foi feita pela vice-presidenta da Colômbia, Francia Márquez, que ministrou conferência na Escola de Engenharia na tarde desta sexta-feira, dia 14. Ela destacou iniciativas de reparação histórica em curso na Colômbia e convocou jovens e instituições a assumirem papel ativo na luta antirracista e na reconstrução de vínculos com o continente africano, em atividade que integrou a programação do 2º Seminário Internacional Pró-reparações.
A Constituição colombiana só reconheceu os direitos coletivos da população negra, de acordo com Francia Márquez, em 1991 – mais de um século após a abolição. O marco legal de direitos territoriais, culturais e econômicos, por sinal, só começou a ser regulamentado pelo atual governo três décadas depois de promulgada a Lei. O Estado colombiano, no entendimento de Francia Márquez, “se nega a reconhecer a condição de vítima imposta aos povos afrodescendentes pela escravidão e pelo colonialismo, cuja herança se expressa hoje no racismo estrutural”.
Ela apresentou ações estruturais atualmente conduzidas pelo governo colombiano, entre as quais, o Sistema Nacional de Cuidados, que reconhece e valoriza o trabalho histórico das mulheres negras, incluindo mães comunitárias que zelaram por milhões de crianças sem garantias trabalhistas, além de reformas no sistema de saúde, iniciativas ambientais e políticas de fortalecimento de guardiões de saberes, do patrimônio cultural e do meio ambiente.
A vice-presidenta sublinhou, de forma especial, a agenda de reconexão com o continente africano, inédita na política externa do país. No campo internacional, destacou a criação da Comissão Nacional de Reparações Históricas e a atuação de Colômbia e Brasil para fortalecer o reconhecimento dos povos afrodescendentes em organismos multilaterais, inclusive no sistema ambiental da ONU.
Francia Márquez também relatou diálogos com o Vaticano sobre o tema das reparações e o reconhecimento da espiritualidade de matriz africana. “O Papa Francisco havia manifestado disposição em avançar em uma declaração pública de pedido de perdão. O processo foi interrompido com sua morte, mas continuará sendo reivindicado”, informou.
Por fim, a vice-presidente convidou a comunidade acadêmica da UFMG para a Cúpula Celac, que será realizada na Colômbia em março do próximo ano. “A juventude universitária tem papel central na construção de um futuro antirracista, capaz de transformar sociedades historicamente marcadas pelo colonialismo, pelo patriarcado e pela violência”, enfatizou.
Liderança
Francia Márquez é uma liderança afro-colombiana com sólida trajetória no campo dos direitos humanos, da defesa ambiental e da articulação de comunidades negras. Integrante da Organização de Processos de Comunidades Negras desde 1997, tornou-se uma das vozes mais importantes na luta contra a mineração ilegal no departamento de Cauca. Atuou como presidenta da Associação de Mulheres Afrodescendentes de Yolombó de 2010 a 2013 e ganhou projeção nacional e internacional ao organizar, em 2014, uma marcha de 563 quilômetros até Bogotá, mobilizando dezenas de mulheres para exigir a retirada de mineradores ilegais da comunidade de La Toma. Por essa atuação, recebeu o Prêmio Goldman de Meio Ambiente, em 2018 – uma das distinções mais prestigiadas do mundo na área socioambiental.
Em 2022, foi eleita vice-presidenta da Colômbia, tornando-se a primeira mulher afrodescendente a ocupar o cargo. Desde então, tem defendido políticas de reparação histórica, fortalecimento de direitos coletivos e proteção territorial.
Chance de plenitude
Durante o evento, a pró-reitora de Assuntos Estudantis, Licínia Corrêa, afirmou que a presença negra na universidade é fruto de uma trajetória longa e coletiva. “A UFMG vive um processo contínuo de afirmação identitária da população negra, que atravessa dimensões acadêmicas, epistêmicas, estéticas e subjetivas. Esse caminho orienta a programação do Novembro Negro, que, neste ano, discute subjetividades negras e reparação”, ressaltou.
Licínia destacou que a universidade é espaço central para a disputa de sentidos históricos, já que “o ambiente acadêmico foi, durante séculos, instrumento de colonização das mentes”. A professora enfatizou também que a universidade que se apropriou, sem reconhecimento, dos saberes produzidos por povos africanos. “Construímos as primeiras universidades, e elas foram ignoradas pelo mundo branco”, lamentou, criticando a narrativa eurocêntrica que aponta Bolonha como origem exclusiva da educação superior.
As ações afirmativas, especialmente as cotas sociais e raciais, constituem, em seu entendimento, “uma forma concreta de reparação histórica”. “Garantir o acesso de jovens negros e negras à universidade é enfrentar séculos de negação do direito à educação e ampliar possibilidades de vida digna. Cada jovem negro que entra nesta universidade significa uma chance de viver plenamente”, declarou.
Empenho político
As ações levadas a cabo pelo atual governo colombiano também foram destacadas pelo coordenador do Fórum Popular pró-reparações, Agustin Lao-Montes. Segundo ele, graças ao empenho político da vice-presidente, o país avança pela primeira vez rumo à aprovação de um plano nacional de reparação histórica. O pesquisador comentou também as articulações em curso para uma declaração mundial dos direitos da criança afrodescendente e conclamou o governo brasileiro a aderir ao processo.
Agustin Lao-Montes situou a discussão das reparações frente aos “holocaustos” contemporâneos e às múltiplas violências que incidem sobre populações negras e racializadas, mencionando o genocídio negro no Brasil, as crises no Congo, em Gaza, no Sudão e a instabilidade crônica do Haiti, que ele atribui à ação histórica dos poderes coloniais ocidentais. “Vivemos uma época crítica de crise civilizatória, em que o equilíbrio ecológico do planeta e a vida estão em perigo”, afirmou, denunciando também as ameaças de novos conflitos no continente americano.
Decolonizar a UFMG
A coordenadora do coletivo Minas Pró-reparações, Diva Moreira, conclamou a direção da UFMG a “percorrer o campus, visitando faculdades e departamentos, para pensar concretamente como descolonizar e decolonizar a UFMG”. Diva também evocou a importância de referências negras na história da educação, defendendo que a Escola de Engenharia adote André Rebouças como patrono. Rebouças, lembrou, foi engenheiro de excelência, professor no Rio de Janeiro e intelectual que vivenciou o racismo nos Estados Unidos, onde chegou a passar fome por não poder entrar no vagão-restaurante de um trem. Para Diva, resgatar figuras como Rebouças é “parte fundamental do processo de decolonização institucional”.
A pesquisadora, a partir daí, ampliou sua análise para um diagnóstico sobre as universidades brasileiras, que, segundo ela, vêm sendo sucateadas. “As áreas de Filosofia e Ciências Humanas deveriam ocupar lugar central na formação crítica das sociedades. Sem pensamento não há ação, não há práxis, não há transformação”, asseverou. Para Diva Moreira, a crise educacional está associada à deterioração da formação básica. “Uma nova educação precisa nascer na base e repercutir até o ensino superior, inspirada nas ideias de Paulo Freire. A prioridade absoluta deve ser dada ao pensamento crítico, à filosofia e à educação como processos de emancipação”, defendeu.
Diferentes epistemes
O vice-reitor Alessandro Moreira destacou que o Novembro Negro reafirma o compromisso institucional da UFMG com a promoção de políticas antirracistas e com o reconhecimento das contribuições históricas e contemporâneas da população negra para a universidade e para o país.
Para ele, a programação não se limita a um calendário simbólico, mas constitui “um espaço permanente de reflexão, de disputa de narrativas e de fortalecimento de ações que enfrentem desigualdades ainda persistentes”. Alessandro Moreira ressaltou, ainda, que iniciativas como conferências, rodas de conversa e apresentações artísticas ampliam a dimensão formativa da universidade, ao articular produção de conhecimento, engajamento social e valorização de diferentes epistemes. “Ao celebrarmos o Novembro Negro, reforçamos a responsabilidade institucional de garantir que essas discussões ecoem para além deste mês e impactem práticas acadêmicas, currículos e políticas de inclusão”.
Reparações
A UFMG foi uma das sedes da segunda edição do Seminário Internacional Pró-reparações, espaço de debate, articulação e construção coletiva de políticas reparatórias para os povos negros e indígenas do Brasil e da Diáspora Africana. Com o tema Um projeto de nação: diaspórico, popular e panafricanista, o evento promoveu painéis temáticos com participação de autoridades internacionais, lideranças de movimentos sociais, parlamentares negros, além de ativistas, artistas e intelectuais. A programação incluiu palestras sobre a história e o estado atual da reparação racial no Brasil, intervenções artísticas, debates e mesas-redondas.
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