E-book trata das formas de degradação da cerâmica do Vale do Jequitinhonha
Pesquisadores da área de conservação-restauração debruçaram-se sobre peças que sofreram ação do tempo e que foram atingidas por incêndio no MHNJB
Por Itamar Rigueira Jr.
No ano de 2012, durante o curso de graduação em Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis, na UFMG, Agesilau Neiva Almada passou seis meses em intercâmbio na Escuela de Conservación y Restauración de Occidente, em Guadalajara, México. Casualmente, aquele semestre era dedicado à cerâmica, e ele conheceu todo o processo relacionado ao suporte: da coleta do barro à restauração, passando pela modelagem e pela queima, entre outras etapas.
Quando, em 2020, já cursando o mestrado, Agesilau estudava peças sacras na Bahia, veio a pandemia da covid-19, e tudo fechou. A solução seria adotar enfoque sobretudo teórico para seus estudos. Mas em junho daquele ano, um incêndio atingiu o Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG – incluindo 180 peças de cerâmica na reserva técnica do museu –, e o mestrado ganhou novo rumo.
A pesquisa resultou no e-book Cerâmica do Vale do Jequitinhonha: Uma coleção do Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais. Agê, como o pesquisador é conhecido, assina a obra com sua orientadora, a professora Maria Regina Emery Quites, do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes (EBA). “O museu tem um acervo muito grande e importante, principalmente da década de 1970, com o qual tive contato quando elaborei o trabalho de conclusão de curso da graduação. No mestrado, fui colaborar no cuidado com a coleção de cerâmica: resgatar peças incendiadas, verificar as perdas, analisar as degradações geradas pelo incêndio”, conta o pesquisador.
O esforço que culminou na dissertação de mestrado e no e-book foi o de compreensão dos impactos do incêndio. Segundo Agê, foi excelente a oportunidade de comparar a degradação natural das peças que estavam expostas e se salvaram do desastre com a degradação provocada pela ação do fogo e, consequentemente, da fuligem.
Tipologia das degradações
Agesilau Almada criou, para o seu trabalho, uma tipologia das degradações nas peças de cerâmica que contempla o processo de criação, o período pós-produção e aquelas geradas pelo incêndio. “A prática no museu me familiarizou com as degradações”, ele diz. O primeiro tipo é a degradação intrínseca, ocorrida na manufatura. São craquelês (pequenas fragmentações na decoração da peça), fissuras e manchas (ocorridas no processo de queima, que é paulatina).
Após a produção, ocorre a degradação extrínseca: fraturas provocadas pela manipulação incorreta, perda de policromia – acidentes, envelhecimento de materiais, rachaduras e os craquelês causados pelas variações de temperaturas e demais problemas gerados pelo acondicionamento equivocado. A degradação gerada pelo incêndio é, em grande parte, relacionada à presença de fuligem. Das 180 peças atingidas, 177 foram acometidas pela fuligem. O pó gerado pela deficiência da queima se depositou sobre as peças.
A composição dessa fuligem é variada, a depender da quantidade e da qualidade dos materiais que há no ambiente. Na reserva do museu, a característica é oleosa, provavelmente em decorrência também da queima da vegetação que é abundante no entorno da edificação e até no telhado, na forma de resíduos. Porque as peças são porosas, a fuligem penetrou e se incorporou às suas estruturas. “O grande problema dessa degradação é a interferência na estética das peças”, afirma Agesilau. “A pintura usada na decoração é produto do próprio barro, razão pela qual, na década de 1970, as cores se restringiam ao vermelho, bege, creme e branco. A fuligem esconde a decoração, o que constitui uma grande dificuldade nas tentativas futuras de restauro.”
Marcas: recuperar ou manter para a história
De acordo com Agesilau Almada, o maior desafio do museu reside na limpeza das peças. Para retirar a fuligem impregnada sobre o suporte, o meio mais utilizado é a limpeza aquosa. Mas a cerâmica do Vale do Jequitinhonha tem uma particularidade, segundo ele: o tipo de barro de que são feitas as peças contém o caulim (um tipo de barro), responsável pela cor branca. “O caulim é fundido a partir de 1250 graus Celsius, e a cerâmica do Vale tem fusão a no máximo 950 graus. Ou seja, o caulim não se funde por completo. Então, em uma simples limpeza, com água destilada, ele pode ser removido. Nesse caso, os museólogos podem optar por tentar recuperar, o que é muito difícil, ou manter as marcas como registro histórico”, explica o conservador-restaurador.
Um esforço no qual Agê esteve envolvido foi o de quantificar as degradações: as fraturas, os craquelês, as manchas (também as geradas pelo apagamento do fogo). Em sua maior parte, as peças estavam guardadas em estantes de aço, apoiadas sobre espumas e uma camada de TNT, e algumas delas estavam envoltas em plástico-bolha. “Esse material adere à cerâmica, o plástico derrete e se prende nas peças”, ele explica.
Por outro lado, as peças nas estantes não sofreram queima total. O telhado se desfez totalmente em algumas das salas, mas apenas parcialmente na sala das cerâmicas do Vale. E os armários foram capazes de proteger, em parte, as obras. “O problema seria o colapso das peças. Elas são muito resistentes, mas talvez não tivessem sobrevivido a um possível impacto do telhado”, diz Agesilau.
O pesquisador ressalta que o estudo empreendido por ele e por Maria Regina Emery Quites é pioneiro. O trabalho de investigação foi iniciado logo após o incêndio, e eles puderam entender como o incêndio se deu, seu impacto e os mecanismos de degradação. “Pude compreender aspectos da constituição da fuligem, ainda que uma análise química mais detalhada tenha sido impedida pelo fechamento do Lacicor [Laboratório de Ciência da Conservação da Escola de Belas Artes] em razão da pandemia”, comenta.
Conservação preventiva e gestão de riscos
Na apresentação do e-book, Maria Regina Emery Quites destaca que a contribuição do trabalho para a área da conservação-restauração de cerâmica extrapola o aspecto técnico, “detalhando as principais deteriorações encontradas em parte de um acervo que ficou incendiado e em outra parte, que estava separada e foi resguardada”. Ainda segundo ela escreve, particularmente sobre o incêndio que atingiu o acervo de cerâmica do Vale, a pesquisa demonstra “a importância da conservação preventiva de acervos e da existência de planos de gerenciamento de riscos para os museus”.
Agesilau Almada diz que fez toda a investigação muito motivado, como profissional da conservação-restauração, e que o isolamento nos tempos mais difíceis da covid-19 acabou favorecendo uma dedicação mais intensa à análise das degradações. Assim como a formação e a experiência no México abriram caminhos, ele acredita que sua pesquisa será capaz de nortear outros trabalhos, que considera muito necessários. “As primeiras esculturas feitas no Brasil são em cerâmica, e a produção sempre foi vasta, e mesmo assim há tão pouco interesse. Talvez seja porque a cerâmica sempre teve menos destaque que outros suportes, como a madeira”, afirma o autor do ebook, cuja pesquisa de doutorado, também no Programa de Pós-graduação em Artes, trata das primeiras peças sacras produzidas no Brasil, pelo monge beneditino Frei Agostinho da Piedade, em Salvador, no século 17.
E-book: Cerâmica do Vale do Jequitinhonha: uma coleção do Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais
Autores: Agesilau Neiva Almada e Maria Regina Emery Quites
Editora: Diálogo Freiriano
367 páginas | Acesso gratuito
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