ecidiu
generosamente a Universidade Federal de Minas Gerais conceder-me o grau de Doutor Honoris
Causa, decerto por ter encontrado méritos suficientes para tal no trabalho que como
escritor venho realizando, o que, obviamente, não me competirá a mim confirmar ou pôr
em dúvida. Limito-me tão-só a relativizá-los, não por excessos de uma modéstia
congénita ou por prudência táctica adquirida com as experiências da idade, mas por uma
atitude de espírito que já se me vai tornando em segunda e imperativa natureza.
Autorizo-me, porém, a crer que se é certo que cheguei a este acto com a legitimidade de
quem a ele foi expressamente chamado, certo é também que não me apresento aqui de mãos
vazias. Trouxe de casa algum trabalho, esse a que o professor Wander Melo Miranda acaba de
referir-se, isto é, alguns livros, algumas idéias, algumas reflexões, o mais e melhor
que, em uma vida que já me surpreende por tão longa, pude ir inventando e fabricando,
uma ponte de palavras por onde intento chegar aos meus leitores e on-de desejo que os meus
leitores me encontrem, com a esperança ou a certeza, deles e minha, de que lá estará e
saiba estar, não apenas o autor, mas o homem real, a simples pessoa que sou. Não peço
mais do que isto porque é o máximo que peço.
Abordar um texto literário, qualquer que seja o grau de profundidade ou amplitude da
leitura, pressupõe, e ouso dizer que pressuporá sempre, uma certa incomodidade do
espírito, como se uma consciência exterior observasse com ironia a inanidade relativa de
um trabalho de desocultação que, estando obrigado a organizar, no complexo sistema
capilar do texto, um itinerário contínuo e uma univocidade coerente, ao mesmo tempo se
obriga a abandonar as mil e uma vias oferecidas por outros itinerários possíveis, não
obstante de estar ciente, de antemão, de que só depois de os ter percorrido a todos, a
esses e àquele que escolheu, é que acederia ao significado último do texto. Acederia
talvez. Porque poderia suceder que uma leitura supostamente totalizadora, assim obtida,
viesse a servir para acrescentar à rede sanguínea do texto uma ramificação nova, um
circuito novo, e portanto impor a necessidade de uma nova leitura... Todos carpimos a
sorte de Sísifo, condenado a empurrar pela montanha acima uma sempiterna pedra que
sempiternamente rolará para o fundo do vale, mas talvez o pior castigo do desafortunado
homem seja saber que não poderá vir tocar em uma só das outras pedras ao redor, essas
que esperam o esforço que as arrancaria à imobilidade.
Não perguntamos ao sonhador por que razão está sonhando, não requeremos do pensador as
razões primeiras do seu pensar, mas de um e do outro gostaríamos de saber aonde os
levaram, ou levaram eles, o pensamento e o sonho. Numa palavra, quereríamos conhecer,
para comodidade nossa, essa pequena constelação de brevidades a que chamamos
conclusões.
Porém, ao escritor - sonho e pensamentos reunidos - não se lhe pode
exigir que nos explique os motivos, desvende os caminhos e assinale os propósitos. O
escritor, à medida que avança, vai apagando os rastos que deixou, cria atrás de si,
entre os dois horizontes, um deserto, razão por que o leitor terá de traçar e abrir, no
terreno assim alisado, uma rota sua, pessoal, que no entanto jamais coincidirá, jamais se
justaporá à do escritor, finalmente indevassável. Por sua vez, o escritor, tendo
varrido os sinais que marcaram não só o carreiro por onde veio, mas também as
hesitações, as pausas, as medições da altura do sol, não saberá dizer-nos por que
caminho chegou aonde agora se encontra, parado no meio do texto ou já no fim dele. Nem o
leitor pode repetir o percurso do escritor, nem o escritor poderá repetir o percurso do
texto: o leitor só poderá interrogar o texto feito, o escritor talvez devesse renunciar
a tentar dizer como o fez. E contudo já sabemos que não renunciará.
Mudança de tom. Por experiência própria, tenho observado que, no seu trato com autores
a quem a fortuna, o destino ou a má sorte não permitiram a graça de um título
académico, mas que, não obstante, foram capazes de produzir obra merecedora de algum
estudo, a atitude das universidades costuma ser de uma benévola e sorridente tolerância,
muito parecida com a que as pessoas razoavelmente sensíveis costumam usar na sua
relação com as crianças e os velhos, com uns porque ainda não sabem, com outros porque
já esqueceram. É graças a tão generoso procedimento que os professores de Literatura,
em geral, e os de Teoria da Literatura, em particular, têm acolhido com simpática
condescendência - sem que por isso se deixem abalar nas suas convicções pessoais e
científicas - a minha ousada declaração de que a figura do narrador não existe de
facto, e que só o autor - repito, só o autor - exerce real função narrativa na obra de
ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro (onde está o narrador numa obra
teatral?), e quem sabe até se na própria poesia, que, tanto quanto sou capaz de
entender, representa a ficção suprema, a ficção das ficções. Procurando auxílio
numa duvidosa ou, pelo menos, problemática correspondência das artes, argumento, em
minha defesa, que entre uma pintura e a pessoa que a observa não há outra mediação que
não seja a do respectivo autor ausente, e que, portanto, não é possível identificar ou
sequer imaginar, por exemplo, a figura de um narrador na Guernica ou nos Fuzilamentos
de la Moncloa. A esta objecção respondem-me, geralmente, que, sendo as artes da
pintura e da escrita diferentes, diferentes teriam de ser também, necessariamente, as
regras que as definem e as leis que as governam. Tão peremptória resposta parece querer
ignorar o facto, em meu entender fundamental, de que não há objeticvamente, nenhuma
essencial diferença entre a mão que guia o pincel ou o vaporizador sobre a tela, e a
mão que desenha as letras no papel ou as faz aparecer no ecrã do computador. Ambas são
prolongamentos de um cérebro, ambas são instrumentos mecânicos e sensitivos capazes,
com adestramento e eficácia semelhantes, de composições e ordenações expressivas, sem
mais barreiras ou intermediários que os da fisiologia e da psicologia.
Nesta minha contestação do narrador, claro está, não vou ao ponto de negar que a
figura de uma entidade assim denominada possa ser exemplificada e apontada no texto , ao
menos, digo-o com o devido respeito, segundo uma lógica bastante similar à das provas
definitivas da existência de Deus formuladas por Santo Anselmo... Aceito, até, a
probabilidade de variantes ou desdobramentos de um suposto narrador central, com o encargo
de expressarem uma pluralidade de pontos de vista e de juízos considerados, pelo autor,
úteis à dialéctica dos conflitos. A pergunta que me faço é se a atenção obsessiva
prestada pelos analistas de texto a tão escorregadias entidades, propiciadora, sem
dúvida, de substanciosas e gratificantes especulações teóricas, não estará a
contribuir para a redução do autor e do seu pensamento a um papel de perigosa
secundaridade na compreensão complexiva da obra. Aclararei que quando falo de pensamento
não estou a esquecer dele os sentimentos e as sensações, as imagens e os sonhos, todas
as vidências do mundo exterior e do mundo interior, sem os quais o pensamento se
tornaria, quíçá, em puro pensar inoperante.
Abandonando desde agora qualquer precaução retórica, o que estou
assumindo aqui, afinal, são as minhas próprias dúvidas e perplexidades sobre a
identidade real da voz narradora que veicula, tanto nos livros que tenho escrito quanto
nos que li até hoje, aquilo que derradeiramente creio ser, caso por caso, e quaisquer que
sejam as técnicas empregadas, o pensamento do autor, o seu próprio, pessoal (até onde
é possível sê-lo), ou, acompanhando-o misturando-se com ele, informando-o e
conformando-o, os pensamentos alheisos, históricos ou contemporáneos, deliberadamente ou
inconscientemente tomados de empréstimo para satisfação das necessidades da narração.
E também me pergunto se a resignação ou a indiferença com que o autor, hoje, parece
aceitar a "usurpação", por um narrador academicamente abençoado, da matéria,
da circunstância e do espaço narrativos que em tempos anteriores lhe eram exclusiva e
inapelavelmente imputados, não será, no fim de contas, uma expressão, mais ou menos
assumida, de um certo grau de abdicação, certamente não só literária, de
responsabilidades que lhe seriam próprias.
"Quem lê, lê para quê? Para encontrar, ou para encontrar-se? Quando o
leitor assoma à entrada de um livro, é para conhecê-lo ou para se reconhecer a si mesmo
nele? Quer o leitor que a leitura seja uma viagem de descobridor pelo mundo do poeta
(designo agora por poesia, se mo permitem, todo o trabalho literário), ou, sem o querer
confessar, suspeita que essa viagem não será mais do que um simples pisar novo das suas
próprias e conhecidas veredas? Não serão o escritor e o leitor como dois mapas de
estradas de países ou regiões diferentes que, ao sobreporem-se, tornados até certo
ponto, um e outro, transparentes pela leitura, se limitam a coincidir algumas vezes em
traços mais ou menos longos de caminho, deixando, inacessíveis e secretos, espaços não
comunicantes, por onde apenas circularão, sozinhos, sem companhia, o escritor na sua
escrita, o leitor na sua leitura? Mais concisamente: que compreendemos nós, de facto,
quando procuramos apreender, outra vez em sentido lato, a palavra e o espírito poéticos?
É comum dizer-se que nenhuma palavra é poética por si mesma, e que são as
outras palavras, quer as próximas quer as distantes, que, sob intenção, mas igualmente,
de modo inesperado, podem torná-la poética. Significa isto que, a par do exercício
voluntarista da elaboração literária, durante a qual se buscam a frio efeitos novos ou
se tenta disfarçar a excessiva presença dos antigos, existe também, e esse será a
melhor sorte de quem escreve, um aparecer repentino, um situar-se natural de palavras,
atraídas umas pelas outras como as diferentes toalhas de água, provindas de ondas e
energias diferentes, se alargam, fluindo e refluindo, na areia lisa da praia. Não é
difícil, em qualquer página escrita, seja de poesia, seja de prosa, encontrar sinais
dessas duas presenças: a expressão lograda que resultou do uso consciente e metódico
dos recursos de uma sabedoria oficinal, e a expressão não menos lograda de quem, não
tendo embora abdicado daqueles recursos, se viu surpreendido por uma súbita e feliz
composição formal, como um cristal que tivesse reunido na perfeição da sua estrela
umas quantas moléculas de água - e só essas.
Que fazemos, os que escrevemos? Nada mais que contar histórias. Contamos
histórias os romancistas, contamos histórias os dramaturgos, contamos também histórias
os poetas, contam-nas igualmente aqueles que não são, e não virão a ser nunca, poetas,
dramaturgos ou romancistas. Mesmo o simples pensar e o simples falar quotidianos são já
uma história. As palavras proferidas e as apenas pensadas, desde que nos levantamos da
cama, pela manhã, até que a ela regressamos, chegada a noite, sem esquecer as do sonho e
as que o sonho tentarem descrever, constituem uma história com uma coerência interna
própria, contínua e fragmentada, e poderão, como tal, em qualquer momento, ser
organizadas e articuladas em história escrita.
O escritor, esse, tudo quanto escrever, desde a primeira palavra, desde a primeira
linha, será em obediência a uma intenção, às vezes clara, às vezes obscura - porém,
de certo modo, sempre discernível e mais ou menos patente, no sentido de que está
obrigado, em todos os casos, a facultar ao leitor, passo a passo, dados cognitivos comuns
a ambos, para que esse leitor possa chegar a algo que, tendo querido parecer novo,
diferente, original talvez, era afinal conhecido porque, sucessivamente, ia sendo
reconhecível. O escritor de histórias, manifestas ou disfarçadas, é um exemplo de
mistificador: conta histórias para que as recebam como críveis e duradouras, apesar de
saber que elas não são mais do que umas quantas palavras suspensas naquilo a que eu
chamaria o instável equilíbrio do fingimento, palavras frágeis, permanentemente
assustadas pela atração de um não-sentido que as empurra para o caos, para fora dos
códigos cuja chave, a cada momento, ameaça perder-se.
Não esqueçamos, porém, que assim como as verdades puras não existem, também as
puras falsidades não podem existir. Porque se é certo que toda a verdade leva consigo,
inevitavelmente, uma parcela de falsidade, que mais não seja por insuficiência
expressiva das palavras, também certo é que nenhuma falsidade chegará a ser tão
radical que não veicule, mesmo contra as intenções do embusteiro, uma parcela de
verdade. A mentira conterá, pois, duas verdades: a própria sua, elementar, isto é, a
verdade da sua própria contradição (a verdade está oculta nas palavras que a negam), e
a outra verdade de que, sem o querer, se tornou veículo, comporte ou não esta nova
verdade, por sua vez, uma parcela de mentira.
De fingimentos de verdade e de verdades de fingimento se fazem,
pois, as histórias. Contudo, em minha opinião, e a despeito do que, no texto, se
apresenta como uma evidência material, a história que ao leitor mais deverá interessar
não é a que, liminarmente, lhe vai ser proposta pela narrativa. Qualquer ficção (para
falar agora apenas do que me está mais próximo) não está formada somente por
personagens, conflitos, situações, lances, peripécias, surpresas, efeitos de estilo,
exibições ginásticas de técnica narrativa - uma ficção é (como toda a obra de arte)
a expressão mais ambiciosa de uma parcela identificada da humanidade, isto é, o seu
autor. Pergunto-me, até, se o que determina o leitor a ler não será ainda a esperança
de descobrir no interior do livro - mais do que a história que lhe será contada - a
pessoa invisível, mas onipresente, do autor. Tal como creio entender, o romance é uma
máscara que esconde e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Provavelmente (digo
provavelmente), o leitor não lê o romance, lê o romancista. Com isto não pretenderei
propor ao leitor que se entregue, durante a leitura, a um trabalho de detetive ou de
antropólogo, procurando pistas ou removendo camadas geológicas, ao cabo e ao fundo das
quais, como um culpado ou uma vítima, ou como um fóssil, se encontraria escondido o
autor... Muito pelo contrário: o que digo é que o autor está no livro todo, que o autor
é todo o livro, mesmo quando o livro não conseguiu ser todo o autor. Na verdade, não
creio que tenha sido simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave
Flaubert declarou que Madame Bovary era ele próprio. Parece-me até, que, ao dizê-lo,
não fez mais do que arrombar uma porta desde sempre aberta. Sem querer faltar ao respeito
devido ao autor de L'éducation sentimentale, poderia mesmo dizer que uma tal afirmação
não peca por excesso, mas sim por defeito: Flaubert esqueceu-se de dizer-nos que ele era
também o marido e os amantes de Emma Bovary, que era a casa e a rua, que era a cidade e
todos quanto, de todas as condições e idades nela viviam, casa, rua e cidade reais ou
imaginadas, tanto faz. Porque a imagem e o espírito, e o sangue e a carne de tudo isto,
tiveram de passar, inteiros, por uma única pessoa: Gustave Flaubert, isto é, o autor, o
homem, a pessoa. Também ainda que sendo tão pouca coisa em comparação, eu sou a
Blimunda e o Baltasar do Memorial do Convento, e em O Evangelho segundo Jesus Cristo não
sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou José e Maria, porque sou também o Deus e o Diabo
que lá estão...
O que o autor vai narrando nos seus livros é tão-somente a sua história pessoal.
Não o relato da sua vida, não a sua biografia linearmente contada, quantas vezes
anódina, quantas vezes desinteressante, mas uma outra, a vida labiríntica, a vida
profunda, aquela que dificilmente ele ousaria ou saberia contar com o seu próprio nome.
Talvez porque o que há de grande no ser humano seja demasiado grande para caber nas
palavras com que mesmo se define e nas sucessivas figuras de si mesmo que lhe povoam um
passado que não é apenas seu, e que por isso lhe escapará de cada vez que tentar
isolá-lo ou isolar-se nele. Talvez, também, porque aquilo em que somos mesquinhos e
pequenos é a tal ponto comum que nada de muito novo poderia ensinar a esse outro ser
pequeno e grande que é o leitor. Finalmente talvez seja por algumas destas razões que
certos autores, entre os quais me incluo, privilegiam, nas histórias que contam, não a
história do que viveram ou vivem (fugindo assim às armadilhas do confessionalismo
literário), mas a história de sua própria memória, com as suas exatidões, os seus
desfalecimentos, as suas mentiras que também são verdades, as suas verdades que não
podem impedir-se de ser também mentiras. Bem vistas as coisas, sou só a memória que
tenho, e essa é a única história que quero contar. Omniscientemente.
Quanto ao narrador, se depois disto ainda houver quem o defenda, que poderá ele
ser senão a mais insignificante personagem de uma história que não é a sua?
A última palavra, Magnífico Reitor, será para expressar o meu profundo
reconhecimento pela honra que a Universidade Federal de Minas Gerais me concedeu
acolhendo-me entre os seus. Procurarei, em todas as circunstâncias, ser digno dela, não
desmerecer jamais do vosso bom juízo, graças ao qual se me abriram as portas desta casa,
que a partir de agora considerarei também minha. Muito obrigado. |