stamos aqui reunidos para
homenagear com alegria, respeito e admiração uma obra que honra a todos nós, cuja
pátria dispersa pelo mundo é a língua portuguesa. Quando a Congregação da Faculdade
de Letras propôs a outorga do título de Doutor honoris causa que ora o Conselho
Universitário desta instituição concede a José Saramago, estava reafirmando o valor da
palavra compartilhada e, assim, traduzia o desejo de uma comunidade inteira de
professores, alunos e funcionários, que amamos seus livros, já nossos companheiros no
sempre renovado ofício de aprender e ensinar - de viver, em suma. Na primeira vez que
aqui esteve, em agosto de 1987 - talvez se lembre - participou das atividades do 1º
Encontro Nacional de Culturas de Países de Língua Portuguesa, em cuja sessão de
encerramento empolgou o público presente ao contar uma história de travessia de
fronteiras geográficas e culturais. Além disso, concedeu-nos, a Lélia Parreira Duarte,
Letícia Malard e a mim, uma longa e reveladora entrevista. Vê-se bem que o consideramos
há muito pessoa da casa, que não queremos levantar-lhe uma estátua, imobilizá-lo e aos
seus textos: sabemos, pela leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, que
escritores são "apenas homens de palavras, e as palavras não podem ser postas em
bronze ou pedra, são só palavras e basta."
Esse basta é pouco, mas é tudo. Dizia um outro grande artista da língua, Graciliano
Ramos, que a tarefa de quem escreve é fazer... bons sapatos. Em "Os Sapateiros da
Literatura", compara cordel e ilhós a verbos e pronomes, aproxima a condição do
operário e a do escritor, conclui pela necessidade do trabalho de ambos. E acrescenta:
"Enfim as sovelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são
armas", como aquelas, caberia assinalar, que na História do Cerco de Lisboa
dão sentido e visibilidade ética à narrativa, através da fala entrecruzada do
historiador e do revisor.
... vá aos autores, provoque-os com o meio
dito meu e o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo de
Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois,
tendo verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a
anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não suba
o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que lhe olhem por
cima do muro do quintal, Neste caso, o Apeles tinha razão, Talvez, mas só enquanto não
viesse examinar a pintura um sábio anatomista, Você é definitivamente céptico, todos
os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum entre os humanos,
enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará
no mundo.
Apeles
e humano, o escritor emenda a parábola ao construir o romance, fazendo dele o lugar de
rasura da História, de um não afirmativo do que poderia ter sido e não foi, mas está
por vir na vírgula deslocada, no verbo resgatado da tradição esquecida, nas vozes
ausentes que se insinuam no narrado. Para tanto, é preciso subir, com firmeza, acima da
chinela, para de lá descortinar o significado da ação dos homens no seu devir
histórico-social. Subida solitária, sem dúvida, ao se perceber a distância que vai da
terra às alturas, mas que acabará revertida pela expressão solidária dos anseios de
uma comunidade de destino. É o que marca a experiência transfigurada em Levantado do
Chão, testemunho assombroso da vida dos camponeses alentejanos, analfabetos como os
avós, pais e tios do escritor - este não o porta-voz daqueles, mas o que fala pela voz
desse outro ao mesmo tempo estranho e familiar que se descobre quem escreve.
A partir desse livro seminal que é Levantado do Chão, acentua-se o papel
de narrador que José Saramago se reserva, ou seja, sua voz tende a ser o resultado de uma
proporção média de vozes que ressoam à sua volta. Mimética e porosa no agenciamento
de enunciações que efetua, assume tom barroquizante em Memorial do Convento,
irônico em O Ano da Morte de Ricardo Reis, polêmico em O Evangelho Segundo
Jesus Cristo, grave em Ensaio sobre a Cegueira, melancólico em Todos os
Nomes, para ficar só com alguns exemplos. Apesar de distintas entre si, essas vozes
configuram o estilo inconfundível que distingue o autor - a prova cerrada a que submete a
palavra, levada ao limite da sua expressão, considerando-se os múltiplos significados
que uma longa e prestigiosa tradição popular e erudita lhe foi emprestando.
Com esse estilo e seu fascínio, o narrador coloca-se no lugar do contador de
histórias e, ao fazê-lo, retoma a modalidade do saber proveniente da fábula, concebida
como contraposição ao determinismo da realidade circundante. Dramatiza, assim, "o
vínculo sempre renovado da fábula atemporal com o mundo dos seus ouvintes, com a
História", para usar aqui as palavras de Italo Calvino. Fissuras, interpolações e
lacunas abrem então espaço para o leitor - lector in fabula - também colocado em
situação de narrador, como ponto de bifurcação e origem de uma rede que se ramifica em
novas colisões, novos cruzamentos de sentido.
Daí o direcionamento paradoxal da ficção para o ensaio, presente sob a forma de
auto-reflexão contínua e simultânea à narrativa, que se apresenta como o desdobramento
de um saber em que todo objeto, fato ou situação, embora decomponível e recomponível
nos seus aspectos constitutivos, não admite uma conclusão ou cognição absoluta. A
atividade de narrar transforma-se em peripécia e conjectura, investigação especulativa
aberta e inacabada. Daí também a natureza peculiar das personagens, construídas no ato
do discurso e muito diferentes de modelos realistas de representação. Na entrevista
referida, diz Saramago:
Tal como não nascemos feitos, uma personagem
não nasce feita, faz-se, vai-se fazendo ao longo do livro e às vezes o livro tem que
acabar sem que a personagem tenha sido completamente feita, porque ela não morre na
última página de um livro ou, às vezes, morre, mas a maior parte das personagens
supõe-se que continuam vivas e vão ter uma vida, muitos anos ou poucos ou alguns em que
vão continuar a definir-se, se calhar... Por causa disso é que meus livros sempre acabam
numa espécie de suspensão, quer dizer, o livro talvez pudesse continuar.
É o momento de suspensão que provoca a leitura
ficcional e instaura, por isso, novos horizontes na História. O aparente desacerto
que a obra mobiliza - quanto mais ficcional, mais perto do histórico - é a sua forma
específica de intervenção política, congeminada àquela vocação de fabulista que se
radica na infância do escritor e lhe dá legitimida de. Em conferência proferida em
Estocolmo, em 7 de dezembro de 1998, lembra-se Saramago do avô Jerônimo, que em noites
estreladas levava o neto a dormir sob figueiras, na Azinhaga, província do Ribatejo, e
lhe contava histórias. Esse ancestral-narrador ou narrador-ancestral, quase mítico na
lembrança - "capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras" -,
era no entanto de uma humanidade muito especial: "ao pressentir que a morte o vinha
buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e
chorando porque sabia que não as tornaria a ver."
Esse aspecto fabuloso do real, traço distintivo das páginas magistrais que
são o texto lido em Estocolmo, constitui a origem de um movimento narrativo que se finca
no passado e projeta o futuro do escritor brilhante e premiado. O ato de nomear as coisas
e o mundo inaugura uma genealogia da "busca do outro que não se encontra lá
nunca", segundo afirmação do autor sobre Todos os Nomes, romance
emblemático no que se refere a toda a obra publicada até o momento. Trata-se aqui de
indagar os limites da solidão humana e sua capacidade de superá-la através dessa busca
obstinada, a que se entrega o Sr. José, modesto escriturário da Conservatória Geral do
Registo Civil. Entre fichas do arquivo de trabalho, o colecionador de recortes sobre
pessoas famosas encontra um nome de uma desconhecida - e sua história começa a mudar
para sempre.
Ao contrário do que desejava, o Sr. José não pôde dormir com a relativa paz de
costume. Perseguia no labirinto confuso de sua cabeça sem metafísica o rasto dos motivos
que o tinham levado a copiar o verbete da mulher desconhecida, e não conseguia encontrar
um só que tivesse podido determinar, conscientemente, a inopinada acção. Apenas
conseguia recordar o movimento de sua mão esquerda pegando num verbete em branco, logo a
mão direita a escrever, os olhos a passarem de um cartão para o outro, como se, na
realidade, fossem eles que estivessem a trazer as palavras dali para aqui.
No espaço que vai do verbete em branco à mão que escreve, personagens
desconhecidas como que adquirem foros de cidadania na obra de José Saramago. Chamem-se
Blimunda ou Joana Carda, Gracinda Mau-Tempo ou a mulher do médico, Baltazar Sete-Sóis ou
Ricardo Reis, Raimundo Silva ou Joaquim Sassa e José Anaiço, entre muitos outros nomes.
São todos a "planta silvestre que dá uma florzinha com quatro pétalas e cresce
pelos cantos, quase sempre esquecida". É este o significado do termo
"saramago", a alcunha de família que um funcionário descuidado - ou muito
cuidadoso - acrescentou por sua conta, na Conservatória do Registo Civil da Golegã, ao
nome José de Sousa, como deveria chamar o nosso escritor.
Por artes do destino, a escrita "falsa" torna-se verdadeira, cumpre-se o
postulado de Roque Lozano, enunciado em A Jangada de Pedra: "para que as
coisas existam duas condições são necessárias, que homem as veja e homem lhes ponha
nome." Tarefa árdua e necessária, especialmente para quem age, como o Sr. José -
personagem e autor - sabendo "que dentro de nós há uma coisa que não tem nome,
essa coisa é o que somos", como se diz no Ensaio sobre a Cegueira. É por
José Saramago ter-se dedicado a avançar, com tanta paixão e rigor, no escuro e no claro
de todos nós, que lhe rendemos esta necessária e justa homenagem. |