"Testemunho literário de Saramago é patrimônio da humanidade"

Francisco César de Sá Barreto

saramesa2.tif (84510 bytes)

A2.jpg (2429 bytes)Universidade Federal de Minas Gerais sente-se em festa ao receber José Saramago, a quem o Conselho Universitário outorgou o título de Doutor honoris causa, em reconhecimento ao excepcional relevo de sua obra de pensador. José Saramago é titular do Prêmio Nobel de Literatura. Entretanto, não é a este que a UFMG deseja homenagear, mas ao autor do Memorial do Convento, Evangelho segundo Jesus Cristo e de Todos os Nomes, à pura voz da dignidade humana em língua portuguesa. Possa aquele prêmio ajudar a difundir entre leitores de outros idiomas a mensagem universal de José Saramago, mas a decisão do nosso Conselho Universitário, fundada em proposta da Congregação da Faculdade de Letras, inspirou-se no respeito e na admiração pela obra literária do homenageado.
Em janeiro último, a UFMG inaugurou sua Agenda Brasil 500 Anos, destinada a repensar os primeiros cinco séculos de nossa inscrição na história ocidental. O evento que estamos vivendo constitui um dos momentos mais significativos dessa Agenda. José Saramago dela participa portando a mais legítima e poderosa das armas, a de seu testemunho humanístico e literário, que passou à condição de patrimônio comum dos homens. Neste final de século tão conturbado, esse testemunho constitui um dese jável roteiro para a convivência e a solidariedade, digno de ser louvado e seguido.
As universidades brasileiras, contrariamente ao que sucede na maioria dos países europeus, são todas muito recentes, nenhuma tendo alcançado ainda o centenário. A Universidade Federal de Minas Gerais completará em poucos meses setenta e dois anos, que estarão marcados pelo evento que hoje nos reúne. Nessas sete décadas, a Universidade destacou 12 cientistas e intelectuais, aos quais conferiu o título de Doutor honoris causa. A esta galeria, que reúne Carlos Drummond de Andrade, Curt Lange, Desmond Tutu e Oscar Niemeyer, entre outros, se junta hoje José Saramago, o 13º Doutor honoris causa da Universidade Federal de Minas Gerais. A importância e dimensão humanística de sua contribuição à literatura universal e de sua atuação como intelectual mais do que o credenciam para estar entre aqueles que já receberam a homenagem maior da instituição. Quem se honra é a UFMG, ao conferir-lhe o título. Sinto-me feliz por ser hoje o Reitor desta Universidade, condição que me assegura o privilégio de presidir a esta sessão e nela cumprir a deliberação de nosso colegiado superior. Está, hoje, engrandecida nossa Universidade, pois se contagia da grandeza humana e intelectual do escritor José Saramago. Muito obrigado.

 

"Sua obra honra a língua portuguesa"

Wander Melo Miranda

 

E2.jpg (2566 bytes)stamos aqui reunidos para homenagear com alegria, respeito e admiração uma obra que honra a todos nós, cuja pátria dispersa pelo mundo é a língua portuguesa. Quando a Congregação da Faculdade de Letras propôs a outorga do título de Doutor honoris causa que ora o Conselho Universitário desta instituição concede a José Saramago, estava reafirmando o valor da palavra compartilhada e, assim, traduzia o desejo de uma comunidade inteira de professores, alunos e funcionários, que amamos seus livros, já nossos companheiros no sempre renovado ofício de aprender e ensinar - de viver, em suma. Na primeira vez que aqui esteve, em agosto de 1987 - talvez se lembre - participou das atividades do 1º Encontro Nacional de Culturas de Países de Língua Portuguesa, em cuja sessão de encerramento empolgou o público presente ao contar uma história de travessia de fronteiras geográficas e culturais. Além disso, concedeu-nos, a Lélia Parreira Duarte, Letícia Malard e a mim, uma longa e reveladora entrevista. Vê-se bem que o consideramos há muito pessoa da casa, que não queremos levantar-lhe uma estátua, imobilizá-lo e aos seus textos: sabemos, pela leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, que escritores são "apenas homens de palavras, e as palavras não podem ser postas em bronze ou pedra, são só palavras e basta."
Esse basta é pouco, mas é tudo. Dizia um outro grande artista da língua, Graciliano Ramos, que a tarefa de quem escreve é fazer... bons sapatos. Em "Os Sapateiros da Literatura", compara cordel e ilhós a verbos e pronomes, aproxima a condição do operário e a do escritor, conclui pela necessidade do trabalho de ambos. E acrescenta: "Enfim as sovelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são armas", como aquelas, caberia assinalar, que na História do Cerco de Lisboa dão sentido e visibilidade ética à narrativa, através da fala entrecruzada do historiador e do revisor.

... vá aos autores, provoque-os com o meio dito meu e o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo de Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do quintal, Neste caso, o Apeles tinha razão, Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio anatomista, Você é definitivamente céptico, todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo.

sarawander.tif (84750 bytes)Apeles e humano, o escritor emenda a parábola ao construir o romance, fazendo dele o lugar de rasura da História, de um não afirmativo do que poderia ter sido e não foi, mas está por vir na vírgula deslocada, no verbo resgatado da tradição esquecida, nas vozes ausentes que se insinuam no narrado. Para tanto, é preciso subir, com firmeza, acima da chinela, para de lá descortinar o significado da ação dos homens no seu devir histórico-social. Subida solitária, sem dúvida, ao se perceber a distância que vai da terra às alturas, mas que acabará revertida pela expressão solidária dos anseios de uma comunidade de destino. É o que marca a experiência transfigurada em Levantado do Chão, testemunho assombroso da vida dos camponeses alentejanos, analfabetos como os avós, pais e tios do escritor - este não o porta-voz daqueles, mas o que fala pela voz desse outro ao mesmo tempo estranho e familiar que se descobre quem escreve.
A partir desse livro seminal que é Levantado do Chão, acentua-se o papel de narrador que José Saramago se reserva, ou seja, sua voz tende a ser o resultado de uma proporção média de vozes que ressoam à sua volta. Mimética e porosa no agenciamento de enunciações que efetua, assume tom barroquizante em Memorial do Convento, irônico em O Ano da Morte de Ricardo Reis, polêmico em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, grave em Ensaio sobre a Cegueira, melancólico em Todos os Nomes, para ficar só com alguns exemplos. Apesar de distintas entre si, essas vozes configuram o estilo inconfundível que distingue o autor - a prova cerrada a que submete a palavra, levada ao limite da sua expressão, considerando-se os múltiplos significados que uma longa e prestigiosa tradição popular e erudita lhe foi emprestando.
Com esse estilo e seu fascínio, o narrador coloca-se no lugar do contador de histórias e, ao fazê-lo, retoma a modalidade do saber proveniente da fábula, concebida como contraposição ao determinismo da realidade circundante. Dramatiza, assim, "o vínculo sempre renovado da fábula atemporal com o mundo dos seus ouvintes, com a História", para usar aqui as palavras de Italo Calvino. Fissuras, interpolações e lacunas abrem então espaço para o leitor - lector in fabula - também colocado em situação de narrador, como ponto de bifurcação e origem de uma rede que se ramifica em novas colisões, novos cruzamentos de sentido.
Daí o direcionamento paradoxal da ficção para o ensaio, presente sob a forma de auto-reflexão contínua e simultânea à narrativa, que se apresenta como o desdobramento de um saber em que todo objeto, fato ou situação, embora decomponível e recomponível nos seus aspectos constitutivos, não admite uma conclusão ou cognição absoluta. A atividade de narrar transforma-se em peripécia e conjectura, investigação especulativa aberta e inacabada. Daí também a natureza peculiar das personagens, construídas no ato do discurso e muito diferentes de modelos realistas de representação. Na entrevista referida, diz Saramago:

Tal como não nascemos feitos, uma personagem não nasce feita, faz-se, vai-se fazendo ao longo do livro e às vezes o livro tem que acabar sem que a personagem tenha sido completamente feita, porque ela não morre na última página de um livro ou, às vezes, morre, mas a maior parte das personagens supõe-se que continuam vivas e vão ter uma vida, muitos anos ou poucos ou alguns em que vão continuar a definir-se, se calhar... Por causa disso é que meus livros sempre acabam numa espécie de suspensão, quer dizer, o livro talvez pudesse continuar.

É o momento de suspensão que provoca a leitura ficcional e instaura, por isso, novos horizontes na História. O aparente desacerto que a obra mobiliza - quanto mais ficcional, mais perto do histórico - é a sua forma específica de intervenção política, congeminada àquela vocação de fabulista que se radica na infância do escritor e lhe dá legitimida de. Em conferência proferida em Estocolmo, em 7 de dezembro de 1998, lembra-se Saramago do avô Jerônimo, que em noites estreladas levava o neto a dormir sob figueiras, na Azinhaga, província do Ribatejo, e lhe contava histórias. Esse ancestral-narrador ou narrador-ancestral, quase mítico na lembrança - "capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras" -, era no entanto de uma humanidade muito especial: "ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver."
Esse aspecto fabuloso do real, traço distintivo das páginas magistrais que são o texto lido em Estocolmo, constitui a origem de um movimento narrativo que se finca no passado e projeta o futuro do escritor brilhante e premiado. O ato de nomear as coisas e o mundo inaugura uma genealogia da "busca do outro que não se encontra lá nunca", segundo afirmação do autor sobre Todos os Nomes, romance emblemático no que se refere a toda a obra publicada até o momento. Trata-se aqui de indagar os limites da solidão humana e sua capacidade de superá-la através dessa busca obstinada, a que se entrega o Sr. José, modesto escriturário da Conservatória Geral do Registo Civil. Entre fichas do arquivo de trabalho, o colecionador de recortes sobre pessoas famosas encontra um nome de uma desconhecida - e sua história começa a mudar para sempre.
Ao contrário do que desejava, o Sr. José não pôde dormir com a relativa paz de costume. Perseguia no labirinto confuso de sua cabeça sem metafísica o rasto dos motivos que o tinham levado a copiar o verbete da mulher desconhecida, e não conseguia encontrar um só que tivesse podido determinar, conscientemente, a inopinada acção. Apenas conseguia recordar o movimento de sua mão esquerda pegando num verbete em branco, logo a mão direita a escrever, os olhos a passarem de um cartão para o outro, como se, na realidade, fossem eles que estivessem a trazer as palavras dali para aqui.
No espaço que vai do verbete em branco à mão que escreve, personagens desconhecidas como que adquirem foros de cidadania na obra de José Saramago. Chamem-se Blimunda ou Joana Carda, Gracinda Mau-Tempo ou a mulher do médico, Baltazar Sete-Sóis ou Ricardo Reis, Raimundo Silva ou Joaquim Sassa e José Anaiço, entre muitos outros nomes. São todos a "planta silvestre que dá uma florzinha com quatro pétalas e cresce pelos cantos, quase sempre esquecida". É este o significado do termo "saramago", a alcunha de família que um funcionário descuidado - ou muito cuidadoso - acrescentou por sua conta, na Conservatória do Registo Civil da Golegã, ao nome José de Sousa, como deveria chamar o nosso escritor.
Por artes do destino, a escrita "falsa" torna-se verdadeira, cumpre-se o postulado de Roque Lozano, enunciado em A Jangada de Pedra: "para que as coisas existam duas condições são necessárias, que homem as veja e homem lhes ponha nome." Tarefa árdua e necessária, especialmente para quem age, como o Sr. José - personagem e autor - sabendo "que dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos", como se diz no Ensaio sobre a Cegueira. É por José Saramago ter-se dedicado a avançar, com tanta paixão e rigor, no escuro e no claro de todos nós, que lhe rendemos esta necessária e justa homenagem.