"Testemunho literário de Saramago é patrimônio da humanidade" Francisco César de Sá Barreto |
Universidade Federal de Minas Gerais sente-se em
festa ao receber José Saramago, a quem o Conselho Universitário outorgou o título de
Doutor honoris causa, em reconhecimento ao excepcional relevo de sua obra de
pensador. José Saramago é titular do Prêmio Nobel de Literatura. Entretanto, não é a
este que a UFMG deseja homenagear, mas ao autor do Memorial do Convento, Evangelho
segundo Jesus Cristo e de Todos os Nomes, à pura voz da dignidade humana em
língua portuguesa. Possa aquele prêmio ajudar a difundir entre leitores de outros
idiomas a mensagem universal de José Saramago, mas a decisão do nosso Conselho
Universitário, fundada em proposta da Congregação da Faculdade de Letras, inspirou-se
no respeito e na admiração pela obra literária do homenageado. |
"Sua obra honra a língua portuguesa" Wander Melo Miranda
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stamos aqui reunidos para
homenagear com alegria, respeito e admiração uma obra que honra a todos nós, cuja
pátria dispersa pelo mundo é a língua portuguesa. Quando a Congregação da Faculdade
de Letras propôs a outorga do título de Doutor honoris causa que ora o Conselho
Universitário desta instituição concede a José Saramago, estava reafirmando o valor da
palavra compartilhada e, assim, traduzia o desejo de uma comunidade inteira de
professores, alunos e funcionários, que amamos seus livros, já nossos companheiros no
sempre renovado ofício de aprender e ensinar - de viver, em suma. Na primeira vez que
aqui esteve, em agosto de 1987 - talvez se lembre - participou das atividades do 1º
Encontro Nacional de Culturas de Países de Língua Portuguesa, em cuja sessão de
encerramento empolgou o público presente ao contar uma história de travessia de
fronteiras geográficas e culturais. Além disso, concedeu-nos, a Lélia Parreira Duarte,
Letícia Malard e a mim, uma longa e reveladora entrevista. Vê-se bem que o consideramos
há muito pessoa da casa, que não queremos levantar-lhe uma estátua, imobilizá-lo e aos
seus textos: sabemos, pela leitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, que
escritores são "apenas homens de palavras, e as palavras não podem ser postas em
bronze ou pedra, são só palavras e basta." ... vá aos autores, provoque-os com o meio dito meu e o meio dito seu, e verá como eles lhe respondem com o aplaudido apólogo de Apeles e o sapateiro, quando o operário apontou o erro na sandália duma figura e depois, tendo verificado que o artista emendara o desacerto, se aventurou a dar opiniões sobre a anatomia do joelho, Foi então que Apeles, furioso com o impertinente, lhe disse Não suba o sapateiro acima da chinela, frase histórica, Ninguém gosta que lhe olhem por cima do muro do quintal, Neste caso, o Apeles tinha razão, Talvez, mas só enquanto não viesse examinar a pintura um sábio anatomista, Você é definitivamente céptico, todos os autores são Apeles, mas a tentação do sapateiro é a mais comum entre os humanos, enfim, só o revisor aprendeu que o trabalho de emendar é o único que nunca se acabará no mundo. Apeles
e humano, o escritor emenda a parábola ao construir o romance, fazendo dele o lugar de
rasura da História, de um não afirmativo do que poderia ter sido e não foi, mas está
por vir na vírgula deslocada, no verbo resgatado da tradição esquecida, nas vozes
ausentes que se insinuam no narrado. Para tanto, é preciso subir, com firmeza, acima da
chinela, para de lá descortinar o significado da ação dos homens no seu devir
histórico-social. Subida solitária, sem dúvida, ao se perceber a distância que vai da
terra às alturas, mas que acabará revertida pela expressão solidária dos anseios de
uma comunidade de destino. É o que marca a experiência transfigurada em Levantado do
Chão, testemunho assombroso da vida dos camponeses alentejanos, analfabetos como os
avós, pais e tios do escritor - este não o porta-voz daqueles, mas o que fala pela voz
desse outro ao mesmo tempo estranho e familiar que se descobre quem escreve. Tal como não nascemos feitos, uma personagem não nasce feita, faz-se, vai-se fazendo ao longo do livro e às vezes o livro tem que acabar sem que a personagem tenha sido completamente feita, porque ela não morre na última página de um livro ou, às vezes, morre, mas a maior parte das personagens supõe-se que continuam vivas e vão ter uma vida, muitos anos ou poucos ou alguns em que vão continuar a definir-se, se calhar... Por causa disso é que meus livros sempre acabam numa espécie de suspensão, quer dizer, o livro talvez pudesse continuar. É o momento de suspensão que provoca a leitura
ficcional e instaura, por isso, novos horizontes na História. O aparente desacerto
que a obra mobiliza - quanto mais ficcional, mais perto do histórico - é a sua forma
específica de intervenção política, congeminada àquela vocação de fabulista que se
radica na infância do escritor e lhe dá legitimida de. Em conferência proferida em
Estocolmo, em 7 de dezembro de 1998, lembra-se Saramago do avô Jerônimo, que em noites
estreladas levava o neto a dormir sob figueiras, na Azinhaga, província do Ribatejo, e
lhe contava histórias. Esse ancestral-narrador ou narrador-ancestral, quase mítico na
lembrança - "capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras" -,
era no entanto de uma humanidade muito especial: "ao pressentir que a morte o vinha
buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e
chorando porque sabia que não as tornaria a ver." |