Seminário discute ética na
pesquisa com ser humano

Priscila Cirino

 

U2.jpg (2216 bytes)m detalhado histórico sobre os movimentos da sociedade brasileira e mundial em torno da regulamentação da pesquisa em seres humanos. Esse foi o eixo da palestra proferida pelo coordenador do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), William Saad Hossne, durante seminário promovido no final de agosto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Coep) da Universidade.

Hossne disse que no Brasil a primeira posição do governo sobre o assunto foi oficializada na resolução 1/88. Sete anos depois, a Comissão Nacional de Saúde nomeou uma equipe de 13 pessoas, incluindo médicos, teólogos, engenheiros, lideranças feministas, representantes dos usuários e da indústria, para propor um novo documento sobre pesquisa em seres humanos.

Essa comissão reviu toda a bibliografia dos dez anos anteriores e as deliberações de outros países sobre o tema. O trabalho, que incluiu até uma discussão em audiência pública, foi materializado na resolução 196/96, documento que aponta diretrizes para a avaliação de projetos de pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil.

Hossne argumentou que o documento não é peça de cartório, nem código ou lei. "A reflexão ética não é de natureza normativa. Ética se faz de dentro para fora", enfatizou.

História

Em sua conferência, o professor Hossne lembrou que as primeiras contribuições partiram dos filósofos gregos do século 5 a.C. e se cristalizaram com Hipócrates. "Ele aplicou o conhecimento dos filósofos da época à Medicina, difundindo a idéia de que a natureza das coisas pode ser conhecida através da razão e da observação", explicou o coordenador. Associadas ao pensamento de filósofos como Kant, Spinoza e Locke, as revoluções democráticas dos séculos 17 e 18 foram outro marco para ética em pesquisa, ao introduzirem a noção de direitos humanos. Daí nasceu o princípio da autonomia - o paciente ou voluntário deve decidir e autorizar o tratamento ou teste com base em informações que possibilitem a compreensão do procedimento utilizado - que só entrou claramente na Medicina no século 20. "Com o fim da Segunda Guerra, abusos em pesquisa nos campos de concentração nazista vieram à tona. Ao julgar os casos, a suprema corte dos aliados deparou-se com a falta de documentos jurídicos que condenassem as práticas", contou o professor.

Dois médicos americanos foram designados para traçar a primeira normatização para o tema, o chamado Código de Nuremberg. "Os Estados Unidos, porém, recusaram-se a obedecer suas normas, argumentando que fora feito para povos não civilizados". A maior resis tência veio da Universidade de Harvard. Mas, na década de 60, dois fatos foram decisivos para que os EUA se vissem "obrigados" a aceitar os princípios definidos em Nuremberg. Além de uma pesquisa de Harvard ter sido condenada por todo o meio médico, um professor aposentado publicou, em 62, um trabalho em que fazia uma revisão dos abusos éticos relacionados em artigos nas melhores revistas técnicas do mundo. "Ele encontrou mais deslizes éticos do que os cometidos nos campos de concentração", explicou Hossne.

A partir desses casos, a Associação Médica Mundial reuniu-se para rever as diretrizes definidas após a Segunda Guerra, elaborando a Declaração de Helsink. "Os princípios eram basicamente os mesmos do Código de Nuremberg", afirmou Hossne. Nos últimos 30 anos, a declaração foi revista três vezes pela comunidade médica mundial. Mas essas normas não foram suficientes pa- ra impedir abusos e, na década de 80, novas diretrizes internacionais foram elaboradas.

 

Comitê já aprovou mais de 300 projetos

Todos os projetos de pesquisa desenvolvidos na UFMG envolvendo seres humanos devem passar pelo crivo do Comitê de Ética em Pesquisa (Coep) da Universidade. Depois da aprovação pelo departamento, ou serviço de origem - no caso do Hospital das Clínicas (HC) - o projeto é encaminhado ao Coep, formado por pesquisadores de 11 unidades da Universidade, do próprio HC e por dois representantes da comunidade externa.

No Hospital, além da aquiescência do Comitê, o projeto precisa da aprovação de sua Diretoria de Ensino, Pesquisa e Extensão. "Muitos cursos de pós-graduação, revistas de divulgação e agências de financiamento não aceitam projetos sem aprovação do Comitê", afirma o presidente do Coep, professor Dirceu Greco.

Desde a sua criação, em março de 1997, até agosto deste ano, o Coep analisou 308 projetos. Nenhum chegou a ser vetado pelo Comitê, mas cerca de 40% retornaram aos pesquisadores para ajustes éticos e metodológicos. Depois de aprovados, os pesquisadores são obrigados a enviar relatórios anuais ao Coep informando sobre a evolução das pesquisas. Informações sobre encaminhamento dos projetos ao Coep pelo telefone 248-9364 ou e-mail coep@reitoria.ufmg.br.

 

As barbáries da ciência

Durante o seminário, alguns exemplos clássicos de brutalidades cometidas em pesquisas com seres humanos foram lembrados. Confira alguns deles:

Alemanha (campos de concentração nazistas) · Depois de ferir as pernas dos prisioneiros, os alemães provocavam infecções utilizando fezes, terra e outros excrementos. Uma espécie de antibiótico, a sulfa, com efeitos ainda pouco conhecidos, era aplicada em apenas uma das pernas, para testar a eficiência da substância. A prática causou muitas mortes.

EUA
· Na década de 30, discutiam-se as complicações geradas pelo tratamento inadequado da sifílis. Havia uma "teoria" de que a doença podia provocar complicações neurológicas em brancos. Já nos negros causaria problemas cardiovasculares. Foi planejado um experimento numa pequena cidade do Alabama, onde a população era predominantemente negra. O governo apoiou a criação de um ambulatório na cidade para o tratamento da doença. Espalhou-se a notícia de que a sífilis seria tratada gratuitamente. Algumas pessoas, porém, foram deixadas propositadamente sem tratamento para averiguar as complicações a que estariam sujeitas. O trabalho foi apresentado num congresso internacional em 1952 e seus autores acabaram aplaudidos de pé.

Países de 3o Mundo
. Na década de 90, um grupo de gestantes de países subdesenvolvidos, portadoras do vírus HIV, participou de pesquisa para avaliar a ação do AZT. Metade delas foi deixada sem tratamento, enquanto a outra parte do grupo recebeu meia dose. O objetivo era avaliar se, com a dosagem reduzida, seria possível diminuir o índice de transmissão da doença ao feto.