Cordel foi instrumento de alfabetização no Nordeste

Estudo da FaE mostra diferenças entre os folhetos
produzidos na primeira metade do século em Pernambuco

 

" Quem leu a batalha horrenda
De Oliveiros e Ferrabraz,
Não deve ignorar mais
O que seja uma contenda

E n´uma lucta tremenda
Como se ganha a victória
Pode guardar em memória
O combate mais horrível.
Parece até impossível,
O passado desta história. "

(Exraído de A prisão de Oliveiros e dos seus companheiros de Leandro Gomes de Barros)

 

eunidos com vizinhos e familiares após um dia de trabalho ou nas feiras públicas, adultos e crianças ouviam, impressionados, os detalhes de histórias fantásticas, romances ou fatos políticos recentes, nas rimas do folheto de cordel. Muitos dos ouvintes nunca tinham freqüentado a escola, mas quando viam o texto escrito comparavam as frases que já conheciam de cor e conseguiam decodificá-las. "Assim, muita gente se alfabetizou com o cordel", afirma a pesquisadora Ana Maria de Oliveira Galvão em tese defendida em março junto à Faculdade de Educação da UFMG. Ela afirma que "numa época em que eram poucas as oportunidades educacionais, principalmente na zona rural, o cordel teve o papel de desenvolver as competências na área da leitura".

Professora de História da Educação na Universidade Federal de Pernambuco, Ana Galvão tentou descobrir quem eram os leitores e ouvintes dos folhetos de cordel no estado entre 1930 e 1950. Segundo ela, é importante demarcar um período, já que a mídia e a maioria dos trabalhos acadêmicos não costumam colocar o cordel numa perspectiva histórica, "como se ele e o público não tivessem mudado". Tanto mudaram que é possível perceber uma queda na qualidade do papel e dos recursos gráficos à medida que os folhetos se popularizaram e passaram a ser mais lidos no meio rural.

A professora observa que, inicialmente, o cordel parecia ser um produto para as camadas médias urbanas, mas, a partir das décadas de 30 e 40, tornou-se um impresso mais popular e difundido no campo. Sua venda, antes circunscrita às livrarias, passou às feiras e mercados públicos, onde os vendedores liam trechos das histórias e paravam antes do final, para estimular a compra. Dessa forma, a leitura em voz alta substituiu a leitura individual e silenciosa. A mudança de público acarretou transformações até na formatação dos folhetos. Para facilitar a leitura em voz alta, a diagramação evitava quebrar as estrofes e deixou de usar maiúsculas no início de cada linha.

Histórias rimadas

Marcadas por cantorias e narrações de contos, as reuniões de leitura dos folhetos acabaram firmando-se como a principal opção de lazer de várias comunidades, relata Ana Maria Galvão. Os folhetos também serviam para detalhar fatos históricos. Transformado em história rimada, "um caso tornava-se mais importante do que a mera notícia", assegura a professora. Ela cita como exemplo o suicídio de Vargas: "as pessoas já conheciam o fato, mas encontravam nos folhetos outros detalhes, em forma de narrativa", explica.

Ana Maria Galvão analisou 109 cordéis publicados em Pernambuco entre 1904 e 1957 e entrevistou 35 pessoas que foram leitores/ouvintes dos cordéis na época estudada, entre os quais um vendedor que trabalha com cordel desde 1938 no mercado São José, em Recife. A pesquisadora estudou paralelamente a circulação dos impressos e dados do censo.

Embora não tenha pretendido estudar as origens do cordel, a autora explica que há literaturas semelhantes em várias partes do mundo, como França, Inglaterra, Espanha, Portugal, México e Chile. Segundo ela, os cordéis possivelmente têm sua origem nos livros vindos de Portugal e nas cantorias do Nordeste. "Ele é mais ou menos uma junção da fonte ibérica com as pelejas dos cantadores nordestinos", afirma a autora. Acredita-se que as histórias eram transmitidas oralmente antes de se transformarem em literatura impressa.

No Brasil, o paraibano Leandro Gomes de Barros é considerado o inventor do cordel, sendo de 1893 a primeira publicação de sua autoria de que se tem notícia. Outro clássico dos folhetos é João Martins de Athayde, cujas histórias ainda hoje são reeditadas. Assim como Gomes de Barros, ele publicou suas obras em Pernambuco, o maior pólo de produção de cordéis no país. Apesar de os poetas terem origem sertaneja, inicialmente iam para as cidades, onde poderiam imprimir seus trabalhos. Com a popularização, a impressão e a venda dos folhetos foram descentralizadas.

Tese: Ler/ouvir folhetos de cordel em Pernambuco (1930/1950)
Autora: Ana Maria de Oliveira Galvão
Orientadora: Magda Becker Soares
Defesa: março de 2000, na FaE