A seqüência de DNA deve ser pública * John Sulton **
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Minha opinião é que tudo isso é muito importante. Existe a possibilidade de que empresas privadas coloquem-se na situação de guardas que controlam o acesso às informações sobre o genoma humano. Se os esforços privados de fato conseguirem restringir o acesso aos três bilhões de pares de bases ("letras") do genoma humano, o ritmo das pesquisas sobre desordens genéticas vai diminuir e os custos associados ao desenvolvimento de novos tratamentos certamente subirão. Empresas privadas já deram entrada a milhares de pedidos de patentes, cobrindo milhares de seqüências de DNA humano. Na maioria dos casos, sabe-se pouco sobre a função biológica dessas seqüências. Se essas patentes forem concedidas, os pesquisadores, tanto do setor público quanto do privado, podem ser obrigados a pagar pelo uso dessas informações genéticas se conseguirem acesso, para começo de conversa. Não fosse o esforço internacional paralelo financiado por governos e organizações beneficentes para seqüenciar o genoma por inteiro, a situação seria ainda mais grave. Esse esforço, do qual faço parte, é conhecido como Projeto Genoma Humano. Está determinado por informações básicas da seqüência genética, à livre disposição de cientistas médicos no mundo inteiro. Todos os dias divulgamos nossos dados mais recentes na Internet. Isso significa que cientistas já estão usando as informações hoje, sem quaisquer restrições legais, ou obrigações financeiras. Completada a etapa do primeiro rascunho, vamos seguir adiante para preencher os espaços vazios que faltam e elaborar o produto de mais alta qualidade possível. Uma vantagem adicional de publicar os dados brutos de maneira instantânea é que, a partir desse momento, a informação não pode mais ser patenteada. Muitas pessoas perguntam por que essas informações deveriam ser disponíveis gratuitamente. Afinal, hoje em dia somos obrigados a pagar por informações que talvez possam levar a aplicações comerciais, tais como dados resultantes de pesquisas de mercado, materiais em arquivos ou informações financeiras. O genoma é diferente, por uma série de razões. Em primeiro lugar, e mais importante: ele é parte intrínseca de cada ser humano, uma herança comum que todos nós deveríamos compartilhar. Oculto nessa herança comum está o conhecimento que vai levar a toda espécie de possibilidades instigantes em matéria de medicina e no tratamento de doenças, como medicamentos sem efeitos colaterais ou sob medida para grupos específicos de pacientes. Mas, sobretudo, é a matéria-prima para milhares de mentes inspiradas que estão escrevendo o manual completo do funcionamento do corpo humano. Essas cabeças vão nos conduzir a conquistas que, por enquanto, não podemos sequer conceber. Sob quais aspectos, além disso, o genoma difere de outros produtos de valor? Uma patente geralmente é concedida a uma invenção e não a uma descoberta. Uma idéia precisa ser original, não ocorrer na natureza e possuir utilidade definida. A maioria das seqüências do DNA humano não satisfaz quaisquer desses critérios. Os genes são descobertos, eles ocorrem na natureza e, na maioria dos casos, temos apenas uma vaga idéia do que fazem. Com o tempo, vamos chegar a compreendê-los por completo. E esse fato também constitui parte do problema. Empresas que requerem patentes sem ter conhecimento específico da função das seqüências genéticas muitas vezes solicitam um tipo de patente conhecida como proteção ampla, capaz de aplicar-se a qualquer número de possíveis funções. Se tal patente for concedida, a empresa passará a ser dona dos direitos de uso da informação, mesmo que outra pessoa ou empresa não-proprietária venha a descobrir a função daquele gene. Não me entenda mal. Não sou contra o patenteamento. Os cientistas e inventores precisam dispor de proteção para os aplicativos inovadores que são fruto de seu trabalho árduo e de sua imaginação. É por isso que dispomos de proteção à propriedade intelectual de processos tecnológicos, além de produtos manufaturados, incluindo livros e música. Mas não temos patentes das letras do alfabeto usado para escrever os livros ou das notas usadas para compor a música. Patentear seqüências de genes humanos equivale a patentear letras ou notas musicais. Devemos patentear os medicamentos que serão produzidos como resultado do alfabeto genético humano, mas não as letras desse alfabeto. Em declaração recente, o presidente norte-americano Bill Clinton e o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, disseram que "os dados fundamentais brutos referentes ao genoma humano, incluindo a seqüência do DNA humano e suas variações, devem ser colocados à livre disposição de cientistas em todo o mundo". A declaração, preparada com cuidado ao longo de vários meses, expressa o que a maioria das pessoas quer, e vai estimular a discussão pública dessas questões altamente complexas. O que vai acontecer a seguir? Hoje já é amplamente sabido que o Projeto Genoma Humano fez um esforço para colaborar com uma das empresas privadas que estão fazendo o seqüenciamento genético, a norte-americana Celera Genomics. Em troca de sua colaboração, a companhia queria ter os direitos exclusivos, por um prazo de cinco anos, sobre a distribuicão das informações relativas ao genoma. Está aí o problema. E é essa a razão pela qual o Projeto Genoma Humano não podia concordar com a proposta. Não adianta muito tornar públicos os dados se os cientistas não forem autorizados a modificá-los, acrescentar outros dados a eles e repassá-los a seus colegas. A biologia é rica em informações, e a livre manipulação de bancos de dados com tal finalidade (uma atividade conhecida como bioinformática) vai tornar-se cada vez mais importante no futuro. Além disso, não se deve permitir que interesses privados tenham o poder de restringir utilizações futuras de dados que pertencem ao público. Na verdade, é a partilha das informações básicas obtidas pela pesquisa que permite o avanço científico.
* Artigo escrito para a revista New Scientist, de Londres, e publicado pela Folha de São Paulo, no dia 27/06. ** Diretor do Centro Sanger do Campus do Genoma do Wellcome Trust, em Cambridge, Reino Unido, segundo maior financiador do Projeto Genoma Humano (PGH). |