/ Hermeto Pascoal

"Minha religião é a música"

Murilo Gontijo

esde quando apontou o nariz no interior de Alagoas, há 64 anos, o mago da música Hermeto Pascoal não parou de produzir sons. Nas mãos dele, um copo vira saxofone, uma chaleira, trompete, e um piano continua piano. Músico reconhecido internacionalmente, Hermeto é um caso raro de produtividade com qualidade. São cerca de 2500 composições ao longo de uma carreira de sucesso. Numa das muitas tardes frias de Diamantina, ele recebeu o BOLETIM para conceder a seguinte entrevista:

 

BOLETIM - O que representa para você estar em Diamantina, participando do Festival de Inverno da UFMG?

Hermeto Pascoal - É a primeira vez que venho a Diamantina e está sendo uma experiência maravilhosa. Acho que qualquer artista gostaria de participar de um festival de nível tão bom, com uma proposta tão inteligente. Diamantina é linda. Eu até acabei de fazer uma música para a cidade, na qual falo da alegria de um alagoano de visitar esse lugar que foi tombado como Patrimônio Histórico da Humanidade.

B - Ela já tem nome?

HP - Tem. Chama-se "Viva Diamantina". Ela recupera um pouco dos sons do folclore mineiro, aquela coisa bonita, com violas tocando, que a gente vê muito também no Norte e no Nordeste.

B - Você acaba de chegar a Diamantina e já fez uma música para a cidade. Como se dá seu processo criativo?

HP - As minhas músicas nascem espontaneamente, sob a inspiração de lugares, pessoas... Quando visito um lugar, não prometo fazer música, mas freqüentemente a inspiração vem de um modo natural. Eu não paro para bolar a música, procuro fugir do óbvio para me inspirar. Dou ênfase a coisas às quais ninguém dá.

B - Qual é sua relação com cada uma de suas músicas?

HP ­ Elas são como filhas. E nunca um pai gosta mais deste ou daquele filho. Eu amo todas as melodias que compus de modo igualitário. Amo também todos os instrumentos com os quais executo as músicas. Se você me perguntar de qual instrumento gosto mais, diria que é aquele que estou tocando no mo mento. A sensação de tocar um instrumento é a mesma de abraçar um filho. Os outros ficam ali esperando a vez. Daqui a pouco largo um e pego outro, ponho no colo, brinco...

B - Em setembro, você lançará o livro "Calendário do Som". Como surgiu essa idéia?

HP ­ Para mim, compor é algo muito fácil. Minha cabeça é uma fonte, uma nascente. E uma nascente quer que alguém venha buscar a água, que vai sendo substituída. Eu tenho sempre que compor porque minha cabeça se enche de idéias. O livro surgiu como uma intuição. Sempre que eu estava viajando, ou às vezes no banho, pensava: "Hermeto, você tem que fazer uma música por dia, durante um ano. Onde você estiver tocando, em qualquer parte do mundo."

B - Como funciona essa coisa de ficar conversando consigo próprio?

HP - Tenho muita intimidade com minha intuição. No caso do livro, disse para ela: "você não está se esquecendo de que faço mais de uma música por dia?" Aí a intuição: "mas você precisa fazer na pauta." Essa minha intuição não sabe nem teoria musical. Na pauta quer dizer numa linha só. Como vou fazer música numa linha só? E eu disse: "você sabe muito bem que eu não faço nada premeditado. Não faço a coisa marcada, como obrigação." E ela respondeu: "Não, você vai fazer como devoção. Isso é uma devoção. E é muito rígido. Você não pode deixar passar de meia-noite e terá que doar tudo o que ganhar com o livro para instituições de caridade."

B - Esse foi, então, um acordo com você mesmo?

HP - Foi um acordo com a minha intuição, que chamo de personagem. Tudo que aprendi e sei foi assim.

B - Isso tem um quê de religioso. Você é místico?

HP - Minha religião é a música. Deus me disse: "A religião de vocês aí, meu filho, é o trabalho. É o que vocês gostam de fazer na vida. Falem menos de mim, pensem mais. Sintam-me. Se pensarem em mim, estarei no meio de vocês". Esse é o Deus que me deu a graça de ser um músico autodidata e intuitivo.

B - Como um músico autodidata consegue o respeito dos músicos acadêmicos?

HP - Até os 14 anos, eu vivia com os animais lá no interior de Alagoas, onde aprendi o som da água e do mato. Sei da sensibilidade do mundo. E música você sente ou não. Há muitos anos, arranjaram um professor para me ensinar teoria, mas ele se recusou porque eu não enxergava direito. Ele não podia ficar tomando conta de um aluno só, tendo uma turma de 50. Mas, ao contrário de me desanimar, isso me incentivou. Eu sempre tive um ouvido muito bom, tocava em orquestra sem ler nada, enquanto todo mundo precisava ler.