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Nº 1346 - Ano 28 - 25.04.2002

A arte de curar

Livro de professora da História discute a prática de médicos e curandeiros no século 19

Ana Siqueira

farmácia de Avelino Fóscolo não era apenas o lugar onde se manipulavam e comercializavam medicamentos. O estabelecimento também funcionava como ponto de encontro da cidade e espécie de consultório médico, pois Fóscolo, que aprendeu o ofício com o sogro, lá recebia doentes e prescrevia remédios. Com quase 80 anos, a ex-escrava Comadre Felicidade era exímia parteira e enfermeira, muito requisitada por pobres e ricos, apesar de não possuir qualquer diploma. O cirurgião itinerante Mané Martins também fazia partos, até cesarianas, sempre utilizando seu famoso canivete Roger, bem afiado e sem assepsia. O barbeiro Moura criava sanguessugas, as bichas, para provocar sangramentos nos doentes. Alguns de seus colegas de ofício iam mais longe, aproveitando os instrumentos que usavam nos cortes de cabelo para realizar pequenas cirurgias e até para arrancar dentes.

Tais personagens, que hoje parecem bizarros, carregavam fama e prestígio no século 19. Eram os "profissionais" que portavam a cura e aliviavam o sofrimento da população de Minas Gerais, numa época em que "doutor" formado na faculdade não aparecia em qualquer paragem. Esse universo de curandeiros, boticários e cirurgiões, além dos médicos acadêmicos, inspirou a professora Betânia Gonçalves Figueiredo, do departamento de História da Fafich, a escrever o livro A arte de curar, que acaba de ser lançado pela Editora Vício de Leitura.

Betânia construiu sua obra a partir do contexto das relações sociais nas cidades mineiras do século 19, rompendo com a abordagem tradicional, que considera, em primeiro lugar, os discursos médico-científicos e os seus projetos de saber e poder. Através de pesquisa sistemática em bibliografia, que inclui jornais e legislação da época, relatos de viajantes e memorialistas, livros e artigos, ela constatou que a população mineira de então preferia se tratar com os chamados práticos, profissionais sem formação acadêmica. Os médicos acadêmicos concentravam-se nos centros maiores, falavam difícil, cobravam caro e não participavam do cotidiano da maioria das localidades. Os práticos, ao contrário, eram acessíveis e integrados às comunidades, tinham mais sensibilidade para ouvir os doentes e ainda eram amparados pela legislação. Além disso, a falta de hábito em recorrer aos médicos e a crença nas práticas tradicionais faziam com que os profissionais de formação acadêmica fossem procurados apenas em último caso. "O médico era chamado quase na hora da morte, junto com o padre que ia dar a extrema-unção", conta Betânia Figueiredo.

Inversão de hábitos

Segundo a professora, a inversão de hábitos da população só ocorreu após um processo longo e complexo. A criação das escolas de medicina a partir da década de 30 do século 19, os avanços significativos da medicina e as mudanças na legislação, que passou a condenar as práticas tradicionais, foram alguns dos fatores que ajudaram a legitimar o saber médico acadêmico na sociedade. Betânia Figueiredo ressalta, no entanto, que, apesar de sistematicamente desqualificados pela medicina tradicional, seria injusto rotular os práticos como charlatães. "Havia charlatanismo, claro, mas também existiam práticos bem-intencionados, com certo conhecimento e que realmente contribuíam para a cura de doenças". Isso ficou comprovado, segundo ela, tempos depois, através de pesquisas científicas, que garantiram a eficácia de certas ervas e práticas tradicionais no tratamento de enfermidades. Ela lembra ainda que esses profissionais sem formação acadêmica ainda existem em algumas regiões do Estado, particularmente nas áreas rurais, onde o acesso a centros de saúde é mais difícil.

O livro de Betânia é resultado de sua tese de doutorado, defendida em 1999. Especialista em história da ciência, a professora é vinculada ao grupo Scientia & Technica, formado por professores de vários departamentos e que divulga textos e informações na página www.fafich.ufmg.br/~scientia.

Livro: A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX, em Minas Gerais

Autora: Betânia Gonçalves Figueiredo

Editora: Vício de Leitura

Preço: R$ 25,00

 

O "doutor"

da capa preta

O polonês Pedro Luís Napoleão Chernoviz foi um dos médicos mais populares do século 19, embora quase ninguém o tenha conhecido pessoalmente. Sua fama foi alimentada pelos guias de saúde que escreveu, muito utilizados por práticos e médicos em todo o Brasil. Essas cartilhas abordavam quase todas as doenças, oferecendo diagnóstico para os mais variados sintomas e prescrevendo terapias de cura.

O poeta Carlos Drummond de Andrade, que estudou na Faculdade de Farmácia da UFMG, no início do século passado, chegou a registrar o caráter mítico da personalidade de Chernoviz, no poema Dr. Mágico: Dr. Pedro Luís Napoleão Chernoviz/ Tem a maior clientela da cidade/ Não atende a domicílio/ Nem tem escritório/ Ninguém lhe vê a cara/ Misterioso doutor da capa preta...