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Nº 1359 - Ano 28 - 25.07.2002

 

 

A morte da educação

Délcio Vieira Salomon*

vigorar a recente deliberação do Acordo Geral sobre Comércio de
Serviços (GATS) da Organização Mundial do Comércio (OMC), entidades que têm por objetivo o incentivo e a liberalização internacional do comércio de todo tipo de mercadoria e serviço, a educação, notadamente a superior, passará a ser considerada serviço, sob a regulamentação daquelas entidades.

Sendo assim, será decretada a morte da educação como bem público e como dever prioritário do Estado, inerente à sua própria soberania. Universidades, faculdades e escolas particulares passarão a gozar não mais do direito delegado de educar e ensinar, mas do próprio direito prioritário de transformar a educação e o ensino em mercadoria. E esta deixará de ser regida pela Constituição, para o ser pelas leis do comércio e pelas regras do mercado. Em lugar da missão de formar o cidadão, caberá à Escola apenas o
objetivo do lucro.

Apesar de a maioria dos reitores das universidades públicas brasileiras denunciar o fato e conclamar as forças vivas da Nação para se oporem ao mais ignominioso atentado dos últimos tempos, temo que vão será seu esforço, porque tudo leva a crer que o atual governo, por sua adesão ao neoliberalismo e em defesa de sua agenda, por coerência nada fará para se contrapor ao GATS e à OMC. Antes, pelo contrário. Enquanto se esboça o movimento de resistência liderado pelas universidades públicas, o Ministro da Educação participa do movimento capitaneado pelos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, com a anuência da OCDE, do Banco Mundial e de outras entidades significativas, no sentido de que haja "liberalização sem limites dos mercados provedores dos serviços educativos".

Estranhamente, os chamados "donos" do sistema privado de ensino há muito já alimentavam a expectativa de tal fato ocorrer. Grande parte de seu regozijo lamentavelmente há de se debitar à ditadura militar, em que os vários ministros da educação, principalmente o coronel Jarbas Passarinho, fizeram questão de esvaziar e desqualificar o ensino público e incentivar o ensino particular. Os celebrados acordos MEC-USAID e o Plano Atcon não me deixam mentir. Desde então, a escola pública começou a perder em qualidade para a escola privada. Um dos motivos, sem dúvida, foi o atendimento à ideologia e à doutrina da segurança nacional trazida dos Estados Unidos. Por generalização simplista, mas calculada e perversa, as escolas públicas do segundo e terceiro graus foram tidas como "centros de doutrinação marxista". Quem se der ao trabalho de comparar os sistemas de educação pública e de ensino privado anterior e posterior à década de 60 em diante, constatará que a qualidade de ensino, antes apanágio da escola pública, começa celeremente a perder terreno para a escola Privada. Curiosamente, o ensino privado que se conformava em existir ocupando na sociedade o espaço da ação permitida pelo direito delegado (ou como se dizia _ e nunca mais se ouviu essa expressão _ pelo direito supletivo), a partir de então começam a arrogar-se o mesmo lugar ao sol constitucional e jurídico, reservado ao sistema público de educação e ensino.

Independente do aspecto ideológico, há um detalhe na proposição da OMC que não pode ser descuidado. É que, como bem lembrou o Documento da 3a. Reunião dos Reitores de Universidades Públicas Ibero-Americanas, ocorrida em Porto Alegre, em junho de 2002, "qualquer Estado que descumprir os compromissos firmados dentro da OMC no setor de educação superior poderá ser condenado a pagar indenizações aos empresários ou aos industriais da educação que se considerarem prejudicados e estará sujeito a represálias dos países provedores do ensino, em particular do ensino pela Internet".

Sob a capa do neoliberalismo, pretensos sábios e espertos grupos, com a volúpia de dominar o mundo, já decretaram o "fim da história" (Francis Fukuyama), o "fim da arte" (Arthur C. Danto), "o fim da sinfonia e da ópera" (Pierre Boulez) "a morte da Literatura" (Alvin Kerman). Só faltava a OMC decretar a morte da educação como bem público, ao considerá-la como mero bem privado, a ser gerido, exclusivamente, com fins lucrativos. Pouco a pouco os neoliberais rasgam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e sepultam os mais altos valores sob o altar do "deus" Mercado.

Se já tentaram enterrar a dialética, que serviu de suporte ao movimento de transformação da sociedade e a toda revolução que resgata a liberdade, a igualdade e a fraternidade universal, e se já conseguiram matar a utopia que inspirou a modernidade, agora com a decretação de morte à educação como bem público, só nos restaria dizer, com Peter Eisenman, saturado de tantos decretos mortíferos: "está decretado o fim do fim".

Eis a que ponto chegamos quando se adota como referencial ideológico o neoliberalismo e, como paradigma supremo da modernidade, a transformação dos valores humanistas em mercadoria.

Entretanto, alimento a esperança que não morre de esperar. E sinto que, como eu, muitos não tolerarão ser observadores externos de um cortejo fúnebre indesejado e revoltante; nossas tentativas não passarão a ser meras repetições e mimetismos diante de uma ordem de mercado nefasta. Diante da catástrofe, ainda nos resta gritar com Leon Krier: "Para frente camaradas, precisamos recuar". O aparente recuo de hoje será o salto qualitativo do amanhã que nos aguarda para tudo mudar.

 

*Professor aposentado da UFMG e ex-diretor da Fafich