Busca no site da UFMG




Nº 1360 - Ano 28 - 01.08.2002

Moacyr Scliar

 

"Universidade é reduto
da autêntica literatura"

 

os 65 anos, ele já escreveu nada menos do que 62 livros, entre romances, ensaios e volumes de contos e crônicas. A média de quase um livro por ano de vida ilustra o vigor do escritor porto-alegrense Moacyr Scliar, médico especialista em Saúde Pública e autor de obras premiadas nacional e internacionalmente, como O exército de um homem só (1973), Mês de cães danados (1977), A orelha de Van Gogh (1988), e A mulher que escreveu a bíblia (1999). Na semana passada, ele esteve na UFMG para participar do VIII Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). Na ocasião, falou ao BOLETIM sobre a relação da medicina com a literatura, a importância das universidades na difusão da cultura e o atual panorama literário brasileiro.

O senhor é médico, especialista em Saúde Pública. Na literatura brasileira, outros escritores de renome, como Guimarães Rosa e Pedro Nava, têm formação médica. Onde as duas áreas se encontram?

Eu me tornei escritor antes de ser médico. A literatura está ligada à minha infância. Minha mãe foi professora e me ensinou a ler e a escrever. Mais importante do que isso, é o fato de que tanto ela como meu pai, migrantes judeus-russos, foram grandes contadores de histórias. Ouvir e contar histórias fez parte da tradição de nossa família. Muito cedo, desde os sete ou oito anos, comecei a escrever as histórias que meus pais contavam. Depois, entrei na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde descobri uma nova temática, ligada às questões sociais brasileiras. A saúde pública é a porta de entrada para o conhecimento sobre o Brasil. Por isso, a proximidade entre Medicina e literatura é muito forte e antiga. Em primeiro lugar, os médicos têm grande experiência humana, fonte de grande ansiedade. Uma das formas de aliviar tal ansiedade é botar no papel nossa vivência, e, assim, dar um mergulho na natureza humana. Além disso, a Medicina valoriza a palavra, um instrumento transcendente de comunicação entre médicos e pacientes. Essa valorização acaba nos remetendo à literatura.

Como tratar de questões sociais e evitar a literatura panfletária?

Fugir da tentação do panfleto é a atitude básica de qualquer escritor. Mas o importante está em lembrar que, além das questões sociais ou políticas, há o ser humano. E que a política e a vida social são atributos de cada indivíduo. É importante, portanto, que por trás da personagem esteja um ser humano autêntico. Líderes políticos, por exemplo, são pessoas normais, que comem, dormem, amam, sofrem e têm filhos. E é exatamente isso o que possibilita a identificação do eleitor com seu candidato. Da mesma maneira, para que possa se identificar com o escritor, o leitor não pode se sentir dominado. Ele deve partilhar de uma experiência que pode, realmente, causar-lhe mudança interior, o que, no fim, gera mudança social. Mas, no momento em que isso é expresso declaradamente, perde o seu valor.

O senhor veio à UFMG para o VIII Congresso Internacional da Abralic. Qual a importância de tais encontros para as discussões literárias da atualidade?

Fiquei maravilhado com o evento da Abralic. A dimensão e a magnitude do encontro superam tudo o que já vi sobre literatura no Brasil. Uma observação atenta deste Congresso, aliás, mostra que não só a literatura é discutida, como toda a condição brasileira. Debatemos aqui nossos grandes problemas sociais, questões de identidade, além de novos rumos para o País. O grande mérito do encontro está em reconhecer que a literatura representa a porta de entrada para a realidade brasileira. E justamente no momento em que discutir nosso destino é fundamental. Às vésperas de uma eleição, devemos estar conscientes de nossa realidade. No Brasil, houve momentos em que os escritores se reuniam mais. Minha geração, por exemplo, via nos encontros de escritores o respiradouro que nos mantinham vivos e atuantes durante a ditadura militar. Hoje, vejo a Universidade como o reduto da literatura autêntica, não globalizada, massificada ou pasteurizada. Através da formação de professores e de profissionais, a academia consegue contornar esse verdadeiro muro imposto à cultura pelo consumo.

Quem são os principais mediadores sociais entre público e escritores?

Os professores são os principais mediadores da atualidade. O papel da mídia restringe-se à resenha. O único lugar onde realmente pode-se fazer análises profundas da obra literária é a universidade. As discussões chegam à população através do contato permanente entre a universidade e a população.

Como o senhor analisa a literatura produzida hoje no Brasil?

Ela possui grande vigor. O escritor amazonense Milton Hatoun é um exemplo. Acho a ficção de raiz histórica também muito importante. Destaco ainda o renascimento do conto, ressurgido através de nomes como Nelson de Oliveto e Cintia Moscovitz. São os jovens escritores que têm revitalizado o gênero, que, aliás, sempre teve força em Minas Gerais. Gostaria, inclusive, de fazer uma homenagem ao amigo Roberto Drummond, que perdi recentemente. Ele era um contista admirável.

O senhor está trabalhando em algum novo livro?

Acabo de lançar Éden Brasil, dirigido ao público juvenil. Trata-se da história de um empreendimento que busca reconstituir o paraíso terrestre em uma praia de Santa Catarina.