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Nº 1378 - Ano 29 - 12.12.2002

 

 

Vestibular, cotas e meritocracia

Antônio Júlio de Menezes Neto*

UFMG realiza novo vestibular. Jovens ansiosos, que se prepararam durante uma vida, são desafiados a disputarem vagas com seus concorrentes, que, como eles, foram preparados durante uma vida para este momento. Ao final, aquele que tiver maior mérito, estudado mais, perdido mais noites de sono "agarrado" aos livros e estiver melhor preparado, conquistará a sua tão almejada vaga universitária. É o momento de glória, no qual as famílias, que aguardaram por anos a fio e fizeram tantos investimentos, poderão finalmente ser recompensadas. E, assim, espera-se um final feliz para estas famílias e para a Universidade.

Visando assegurar a idoneidade, a eqüidade e a conseqüente garantia da meritocracia no vestibular, a UFMG cerca-o de toda a segurança possível. Candidatos não podem usar relógios nem bonés, não podem ir ao banheiro sozinhos e ainda passam por uma revista eletrônica na entrada deste recinto. Novas regras de segurança são criadas a cada ano, visando ao controle absoluto da individualidade meritocrática. Assim, estaria garantido que os melhores alunos teriam vagas asseguradas, já que estas são limitadas. Tudo bem, se não fosse um "pequeno" detalhe: a meritocracia do vestibular é uma enganosa forma de esconder diferenças sociais, econômicas e culturais na nossa sociedade. Não existe regra de segurança que garanta a "igualdade" nas provas de conhecimento numa sociedade desigual como a sociedade capitalista e, em especial, no capitalismo brasileiro.

A maioria dos estudos críticos sociológicos, realizados em conceituadas universidades pelo mundo afora, defendem que as relações de classes, grupos e subgrupos são enormemente diferen-ciadas e injustas em relação às possibilidades escolares. Assim, as famílias descritas no primeiro parágrafo deste artigo, que investem uma vida inteira na entrada do filho na universidade, estariam econômica e culturalmente situadas na chamada classe média ou alta e possuiriam o chamado "capital cultural". Tais pessoas, culturalmente privilegiadas, estão recebendo a "cola" para "enfrentar" o vestibular desde o seu nascimento.

Já os sujeitos das classes populares, quando "enfrentam o vestibular", passaram uma vida na qual o estudo foi, em boa parte, apenas um complemento do seu tempo, pois o trabalho constituiu-se em sua prioridade material, social e cultural. Supletivos noturnos, falta de apoio para as escolas públicas, falta de sentido na escola, carência material, falta de sintonia entre a escola e sua vida prática, trabalho desde a adolescência para garantir a subsistência, sonhos consumistas sem mesada dos pais, linguagem inaceitável pelas normas cultas escolares, meio familiar sem capital cultural, falta de dinheiro no dia-a-dia, racismo e desprezo social, problemas de transporte, moradia, etc., pintam um quadro das pessoas das classes populares que, lamentavelmente, acaba com todas as ilusões de quem ainda acredita na meritocracia do vestibular. Logicamente, há exceções: pessoas pobres e negras que conseguem chegar aos cursos de elite acadêmica e casos em que pessoas com capital cultural desistem no meio do caminho. Apesar de serem importantes para compreendermos os mecanismos socioescolares, esses casos não podem ser apresentados como exemplo da nossa suposta "democracia".

Acredito, pois, que este sistema de vestibular está absolutamente falido. É certo que devemos ter em vista o fim de qualquer diferenciação social, cultural e econômica para avaliar a entrada dos nossos jovens na universidade e, se possível, oferecer vagas para todos os que aqui desejarem ingressar. Neste sentido, a luta pelo socialismo é imprescindível e inquebrantável para a construção de relações igualitárias, universais e absolutamente inclusivas. Mas, como ainda não chegamos lá, precisamos desmistificar esta suposta seleção baseada no mérito e levar mais longe os debates acerca das cotas para as classes populares. O tripé escola pública_pobres_negros poderia ser um bom princípio nas discussões das cotas (apesar de reconhecer que o critério baseado em etnias merece ser melhor debatido). Esta discriminação positiva, longe de ser a ideal, é, no momento, a solução viável para uma sociedade que discrimina e violenta jovens das camadas populares que sofrem todas as mazelas sociais descritas anteriormente.

Em outros artigos publicados neste BOLETIM, critiquei o neoliberalismo, a pós-modernidade e o multiculturalismo liberal, pois os três seriam parte da mesma versão do capitalismo atual. Pois bem, a discriminação positiva que aqui proponho não perde o conceito de totalidade e universalidade e não enfatiza diferenças culturais em detrimento de problemas socioeconômicos. Pelo contrário, reconhece que fazem parte da mesma problemática, e, neste sentido, seria perfeitamente justo pensarmos em cotas como uma política provisória dentro de um contexto que necessita de amplas transformações sociais, culturais e econômicas. Os oprimidos devem desafiar qualquer forma de opressão, lutando permanentemente contra as condições impostas por um sistema que tolhe e diferencia negativamente as pessoas, os grupos e as classes sociais. E as instituições públicas, como as universidades, devem acolher estas reivindicações e lutas sociais.

* Professor da Faculdade de Educação