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Nº 1379 - Ano 29 - 19.12.2002

 

 

No meio do caminho há uma travessia

Heloisa Maria Barbosa*

velocidade da informação, a competitividade exacerbada, as inúmeras opções oferecidas pelas grandes cidades impingem a seus habitantes um ritmo acelerado, muitas vezes incompatível com a capacidade humana, resultando em falta ou baixa qualidade de vida. Vivemos uma época em que o individualismo prevalece sobre o coletivo. Se não revirmos nossos conceitos, logo o bem-estar próprio será mais importante do que o coletivo, e não conseguiremos perceber que a dimensão do nosso bem-estar ultrapassa as fronteiras do nosso ser e das nossas moradias para se tornar um bem coletivo. O comportamento das pessoas revela falta de compromisso e desrespeito pelo direito do próximo, permitindo que o interesse individual sobreponha-se ao coletivo, violentando nossa cidadania.

Apesar das tendências individualistas, o ser humano vive em comunidade e, para suprir as necessidades do dia-a-dia, realiza diversos deslocamentos por vias e calçadas públicas, valendo-se de vários modos de transporte. Esses deslocamentos geram contatos sociais, intencionais ou não, desejáveis ou não. Na circulação urbana, somos pedestres, ou motoristas, ou ciclistas, ou passageiros do transporte coletivo. Independentemente do modo de transporte, os papéis assumidos durante a circulação mudam, pois não somos motoristas ou pedestres todo o tempo. Para cada papel, há um interesse inerente a ele; e, a cada troca de papel, troca-se também o interesse. Porém, continua prevalecendo o interesse individual: o pedestre deseja caminhar com segurança e atravessar a via sem conflitos com os automóveis; o motorista deseja realizar seu trajeto da maneira mais rápida possível, sem sofrer interrupções ocasionadas pela travessia de pedestres. Os diferentes interesses geram conflitos na circulação que devem ser solucionados de maneira equilibrada, privilegiando a categoria mais vulnerável ou aquela que sofrerá mais transtornos com a ocorrência do conflito.

Para a melhoria das condições de circulação de pedestres e veículos nas vias do campus Pampulha, foram implantadas, há cinco anos, nas imediações da Praça de Serviços, três plataformas projetadas para priorizar a travessia de pedestres e reduzir a velocidade dos automóveis que trafegam pelo local. As plataformas proporcionam a continuidade da calçada sobre a pista de rolamento - o pedestre caminha no mesmo nível, e o automóvel trafega nessa extensão da calçada com baixa velocidade, isto é, no domínio do pedestre, respeitando a prioridade conferida a este. Tal seria o esperado tanto pelo projeto da travessia, quanto pelo grau de instrução da população que freqüenta o campus, bem superior à média global da cidade.

A plataforma deveria funcionar como um dispositivo de travessia preferencial para o pedestre. No entanto, a realidade não é bem esta. Observações realizadas sete meses após a implantação do projeto evidenciaram que, em 70% dos casos de ocorrência de conflitos, - automóvel e pedestre na iminência de transpor a plataforma simultaneamente - a prioridade foi do automóvel. Vale lembrar que o automóvel é comandado por um indivíduo, que a qualquer momento pode "estar" pedestre.

Observamos ainda algumas situações interessantes: houve casos, por exemplo, em que o motorista só parou porque o pedestre já havia iniciado a travessia, ou porque este lançou sobre aquele um olhar intimidador. Em outras situações, o motorista "concedeu" a preferência, porque foi pressionado pelo número de pedestres: o primeiro veículo da corrente de tráfego não parou, mas o segundo cedeu a prioridade, diante do crescimento do número de pedestres que aguardavam a vez de atravessar a via. Mas, em alguns casos, nem o segundo, o terceiro ou o quarto veículos pararam; só o quinto veículo da fila dignou-se a deixar o pedestre atravessar.

Observações posteriores, realizadas em maio de 2001, quase quatro anos após a intervenção, demonstraram que, na plataforma com maior número de pedestres, 57% das soluções de conflito foram favoráveis ao pedestre. Porém, nas demais plataformas, a solução da maior parte dos conflitos favoreceu o motorista/veículo. A concessão de prioridade "forçada" pela atitude do pedestre continuou ocorrendo, demonstrando que o pedestre faz valer o seu direito. Ainda hoje, quem circula pela Praça de Serviços continua a testemunhar a soberania do motorista, protegido pelo seu veículo, imperando sobre o direito do pedestre. Este, por sua vez, quando sozinho ou em número reduzido, pára junto ao meio-fio e aguarda até que a plataforma esteja livre para, ironicamente, continuar a sua caminhada por um pequeno trecho preferencial para pedestres.

Assistimos a uma realidade em que a força da máquina reforça a vulnerabilidade do pedestre. O que podemos concluir de tudo isso? Falta de informação para os usuários? Reportagem publicada neste BOLETIM divulgou o projeto por ocasião de sua implantação, e, além disso, as placas informam: "travessia elevada para pedestres". Para bom entendedor, essa informação não basta! Talvez devêssemos adotar mensagens imperativas. Aqui fica o recado: toda vez que você, motorista, deparar-se com uma plataforma para travessia de pedestres, independente de ter ou não mensagem educativa ou imperativa, comporte-se como um bom entendedor e dê a prioridade ao pedestre. Todos nós, pedestres e motoristas ocasionais, agradecemos.

* Professora do departamento de Engenharia de Transportes e Geotecnia da Escola de Engenharia