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Nº 1380 - Ano 29 - 16.01.2003

 

 

A questão da clonagem humana:
O fim da era dos contratos? *

Renato Janine Ribeiro **


clone mexe diretamente com nosso imaginário. Antes da ovelha Dolly, já se pensava em duplicar as pessoas. Há uns dez anos, Calvin, das histórias em quadrinhos, produziu vários clones para não ter de xecutar tarefas aborrecidas, como levantar cedo, tomar banho, ir à escola. Não deu certo. Cada `replicante' desejava o mesmo que ele: nenhum queria cumprir as tarefas chatas, ou seja, ser escravo de Calvin. Mas esse fracasso nos quadrinhos não perturbou o imaginário, tão humano, de ter um duplo. Devemos perguntar o que move esse desejo.

Nascer sempre exigiu um pai e uma mãe. Simplificando, cada um de nós é, geneticamente, metade seu pai, metade sua mãe. Enquanto estivemos presos à reprodução natural, não havia como fugir disso, como ter uma cópia perfeita, completa. A condição humana esteve sujeita a essas limitações e a outras. Mas, na segunda metade do século 20, as fronteiras do humano foram sendo superadas. Faz só uns 20 anos que se difundiu a possibilidade de saber o sexo do feto. Ninguém mais precisa preparar um estoque de roupinha azul e outro rosa. Antes de nascer, o bebê já tem nome, personalidade, brinquedos. Mas o ultra-som que informa o sexo também permite práticas odiosas, como o aborto sistemático de fetos femininos, praticado no Oriente.

De todo modo, o controle do futuro pelo ser humano ampliou-se muito. O Projeto Genoma talvez seja o que mais mobiliza esses desejos de controle. Poderemos, espera-se, acabar com alguns defeitos congênitos antes mesmo do nascimento. Faz parte da condição humana superar os limites que a natureza colocou para nós.

Mas a clonagem de um ser humano vai mais longe: pretende gerar alguém que não nasça de dois genitores - e sim de um só. Ora, muito antes de Calvin, a idéia mais forte por trás da clonagem já aparecia na trilogia A Oréstia, de Ésquilo, escrita 2.500 anos atrás. Orestes matou a mãe, para vingar o pai, assassinado por ela. As Fúrias, espécies de semideusas, querem puni-lo. A deusa da sabedoria, Atena, propõe que ele seja julgado.

O deus Apolo o defende no júri: ele pergunta por que as Fúrias perseguem o matador da mãe, mas nada fizeram contra ela, assassina do esposo. Elas respondem que só punem crimes contra o sangue; um casal não está nesse caso. Mas os jurados absolvem Orestes.

São dois os argumentos contra as Fúrias. O primeiro é que o contrato, unindo o casal, é tão importante (ou mais) que os elos de sangue. Se tolerarmos crimes contra os contratos, não teremos sociedade, apenas clãs em guerra uns contra os outros. Aceitamos este argumento sem dificuldade.

Já o segundo soa muito estranho nos dias de hoje. A mulher, diz Apolo, não passa de um vaso, que recolhe o sêmen do homem. Tudo o que alguém será está na semente de seu pai. O papel da mãe é passivo. Daí que ela seja subordinada ao homem.

Ora, por uns bons 2.000 anos, essa tese será sustentada com certo êxito, mas só será refutada com a moderna genética. Será a clonagem um modo de voltarmos aos tempos de Ésquilo ou à idéia de que um ser nasça de apenas um genitor? É claro que nada impede clonar uma menina com base na mãe.

Enquanto Ésquilo, num paradigma machista, entendia que todos nós, homens ou mulheres, viríamos só do pai, hoje teríamos meninas copiando a mãe, meninos replicando o pai. Quer dizer, não se trata de voltar ao machismo.

Mas trata-se, talvez, de voltar aos tempos pré-contratuais. O contrato não é só um procedimento capitalista. Simboliza a essência de uma sociedade democrática, na qual as pessoas ocupam seus lugares não pelo que são (por seu status), mas pelo que fazem, combinam e pactuam.

Como forma de ordenação do mundo, o contrato é recente. Foi teorizado há apenas 400 anos. É praticado há somente 200. Não chegou a dominar o mundo. Um filme como o chinês Nenhum a menos (1999), todo construído sobre a impossibilidade dos diálogos e dos contratos, mostra como é difícil construir a sociedade sobre a relação negociada com o outro.

Estará terminando, tão precocemente, a era dos contratos? Dispensar a associação de um homem com uma mulher para ter um filho pode ser sinal disso. O narcisismo atual faria gerar filhos de um só. Mas concluamos com duas notas.

Primeira: esse é um desejo, não necessariamente algo viável. Calvin já o percebeu: nada garante que nossa cópia seja nosso escravo. Se o filho-cópia nos dispensa da negociação com a parceira (ou com o parceiro) para gerá-lo, ele também é um outro em relação a nós, e teremos de negociar com ele, para criá-lo. Mesmo o que geneticamente é cópia será, socialmente, um outro. O sonho narcisista pode dar errado.

Segunda: ainda que a clonagem seja uma técnica tão nova, o desejo de não dever nada a ninguém, até na geração de um ser humano, não é novo. Citei Ésquilo, não por tola erudição, mas porque nossos desejos talvez sejam bem arcaicos, atávicos.

As técnicas têm poder quando ativam os nossos desejos: são eles que devemos conhecer, é com eles que devemos negociar.


* Artigo publicado no jornal Folha de SP, de 28/12/2002
** Professor titular de ética e filosofia política da USP