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Nº 1392 - Ano 29 - 24.04.2003

 

 

 

Cotas: sim, não, talvez...*

Lilia Moritz Schwarcz**

 

atual formato do debate inte lectual e social tem apostado em dicotomias: "sim ou não"; "a favor ou contra". Diante dessas polaridades, a única saída é a seleção certeira de uma das opções, como se grandes questões não fossem passíveis de dúvida. Vou me dar ao direito, porém, de recorrer a um "talvez", ou melhor, de tentar explicitar diferentes lados desse debate que tem ganhado a rubrica de cotas. Na verdade, esse jogo é mais antigo: afinal, a descoberta de que as culturas eram distintas é parte da história da humanidade e levou à criação de uma cartografia de reações e políticas.

Mas o tema não se limita ao passado. A questão é contemporânea, uma vez que o racismo representa a hierarquia reinventada em sociedades supostamente igualitárias. A discriminação passa, assim, para a pauta da agenda de nossa era globalizada, marcada por ódios históricos, nomeados a partir da etnia, da origem ou da condição. No entanto, essa ampla definição falha quando se pretende olhar para respostas localizadas. País de larga e violenta convivência com a escravidão, o Brasil alimentou, através de suas elites, um debate que sempre tendeu a opor termos distintos da mesma equação: românticos ou degenerados, miscigenados ou divinamente mestiços, apartheid social ou democracia cultural.

Tal percurso não tem outro objetivo senão nuançar o problema e recolocá-lo sob lentes focadas. Não é o caso de essencializar a questão e encontrar soluções imunes ao tempo e ao espaço; melhor é insistir numa interpretação mais atenta a essa experiência particular. Ao mesmo tempo em que convivemos, não com a realidade, mas com um ideal alentado de democracia racial, um racismo brutal vigora entre nós. Assim, demonstrar as falácias do mito da mistura racial talvez seja tão importante quanto refletir sobre sua eficácia, enquanto representação, e acerca da dificuldade que temos em lidar de frente com o tema. Por isso mesmo, é hora de discutir cotas, sim, e sobretudo de nomear a discriminação, que no Brasil é sempre matéria do outro. Todo brasileiro parece se sentir tal qual "uma ilha de democracia racial rodeado de racistas por todos os lados", como se o problema se esgotasse na denúncia alheia. Melhor seria abrir um amplo debate sobre racismo no Brasil, sem reduzir tudo à questão das cotas, à reserva de vagas para minorias, que não cobrem o conjunto de possibilidades de uma "ação afirmativa".

No entanto, a favor do contra, está a artificialidade de tal política, que não pode ser implementada tal qual varinha de condão. Talvez no contexto norte-americano a saída responda ao velho modelo do one drop blood, que implicou uma racialização da questão, em um contexto em que desigualdade era entendida na chave dos direitos civis. No Brasil, porém, o contexto político é outro, os critérios se misturam, e, assim como não existem bons ou maus racismos, todos são igualmente ruins, também não vale a pena fazer o discurso da vala comum. Em primeiro lugar, seria preciso enfrentar a problemática questão da nomenclatura. Diante da aplicação escorregadia dos termos _ que variam em função da situação social; do uso pragmático das cores, que fez com que, diferente dos cinco termos do IBGE, chegássemos a 136 classificações na última PNAD; da realidade de designações coringas, como pardo, que nada dizem, como é que se determina a fronteira de cor e, no limite, quem é negro no Brasil? É claro que na ótica das pequenas autoridades do cotidiano - porteiros, policiais e seguranças - parece não haver motivo para titubeio. Sabemos, porém, que, utilizada politicamente, a identidade é sempre contrastiva e situacional, variando em função do benefício e do momento. Mas mesmo se julgássemos a "cor" um problema irrelevante, seria bom considerar que uma reserva desse tipo garante a entrada, mas não a permanência em um curso universitário, por exemplo. Com efeito, os prejuízos da história não são ressarcidos por uma vontade formal.

No entanto, o categórico não anuncia resignação. Se, de um lado, não há como negar o preconceito, de outro não dá para apostar na castigada fórmula da democracia racial, que, pensada fora da cultura, mais se parece com uma velha desculpa que ninguém mais escuta. A melhor parte dessa história é que talvez o tema não tenha volta, e que sua explicitação ajude a ir além do jogo de cena. "Cotas" servem como estratégia política para a abertura de um processo de negociação a longo prazo, e como reação à pressão interna e externa, sobre as maneiras como a sociedade brasileira responde à desigualdade. Implica, ainda, a abertura de um diálogo sobre critérios de reconhecimento e de auto-reconhecimento e a releitura de uma memória histórica, feita de tantas seleções e esquecimentos. Entre tantos sim e não, é impossível colocar, agora, um ponto final.

*Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo, em agosto de 2002.

** Professora do departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Escreveu, entre outros, os livros Retrato em branco e negro, Espetáculo das raças, As barbas do Imperador e A longa viagem da Biblioteca dos Reis, todos pela Companhia das Letras.