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Nº 1469 - Ano 31 - 20.1.2005

Uma escrita pictográfica

"A escrita obedece à tinta, e a tinta ao pincel, o pincel à mão, a mão ao coração do pintor", assinalou Shi Tao, artista chinês do século XVII, sobre o poder da caligrafia em revelar o nível cultural _ através do domínio da escrita _ e o valor moral de seus contemporâneos _ atestado pela sabedoria ou pelo coração.

Também conhecida como "a mãe de todas as artes", a caligrafia, ou desenho dos ideogramas chineses, surgiu a partir de pictogramas, tipo de pintura associada a sinais que retratavam a fauna e flora, encontrada em cerâmicas produzidas há seis mil anos. Dessas imagens originaram os caracteres da escrita chinesa, que, como qualquer outra arte visual, apresentou evoluções que demarcaram, inclusive, o estilo e a arte de cada período dinástico.

Os mais antigos escritos em ideograma conhecidos pertencem ao período da dinastia Ying (1300 a 1000 a.C.). Eles eram grafados em cascos de tartaruga e ossos de animais. Pesquisadores estimam que existiam, então, três mil caracteres. Já na dinastia Sui (589-618 a.C.), o número evoluiu para 50 mil ideogramas. O período maoísta assistiu à redução desse número. Atualmente, computadores trabalham com cerca de 6.500 caracteres.

Como representação do idioma, os ideogramas não simbolizam o som de fonemas, como o alfabeto latino, mas conceitos e objetos de modo "gráfico". Classificado como língua tonal, o mandarim _ idioma predominante na China _ é constituído por palavras predominantemente monossilábicas. Da combinação dessas sílabas, com incontáveis homófonos, surgem palavras compostas, que permitem a associação de idéias. O processo oral é semelhante ao da escrita.

Chinesices nas Gerais

pequena Capela de Nossa Senhora do Ó guarda bem seus mistérios. Erguida no início do século XVIII em Sabará, a construção ostenta pinturas que há muito desafiam historiadores da arte sobre sua origem. Chamadas de chinoiseries, elas reproduzem temáticas da arte ornamental chinesa.

O estudioso Rodrigo Melo Franco de Andrade atribuía a autoria da pintura a Jacinto Ribeiro, nascido em Goa, e que realizou diversos trabalhos em Minas no período da construção da capela. Outra corrente sustenta que as pinturas são obras de escravos chineses, que se encontravam no estado. É fato que existiram, mas não há provas de sua presença em Sabará. Circula também a versão segundo a qual as pinturas foram produzidas na China para serem presenteadas à população local pelo rei de Portugal.

Contra essas versões e outras, põe-se o historiador de arte José Roberto Teixeira Leite, que em seu livro A China no Brasil , analisa "as influências e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras". A obra de Teixeira discute a magnitude dessa influência, ocorrida a partir do intenso comércio (ilegal) e do constante fluxo e transferência, para a colônia sul-americana, de mandatários e funcionários do reino português, lotados nas possessões da Ásia.

Segundo Teixeira Leite, antes da descoberta do ouro, os elementos da cultura chinesa estavam melhor assentados no Brasil do que os europeus. Apenas a partir de meados do século XVIII, e sobretudo com a vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, ocorreu o processo de "ocidentalização" do país.

Certamente o vai-e-vem de portugueses entre as possessões e colônias deixou suas marcas. E um dos sinais mais evidentes são as pinturas ornamentais nas igrejas mineiras e baianas. Segundo o autor, "em nenhuma região brasileira, mais do que em Minas Gerais, foram tão numerosos os exemplos de pintura decorativa com temática ou de inspiração chinesa". Entretanto, Teixeira Leite explica que não se trata de arte chinesa, mas de "arte achinesada", uma simplificação da "complexa estética do Extremo Oriente". Enfim, uma chinesice.

Acredita-se que esse tipo de trabalho, produzido por artistas locais, tenha origens em pinturas que decoravam inúmeros outros objetos importados da China. Porém, por que ornamentos tão nitidamente profanos e festivos, pergunta o autor, estariam presentes em igrejas de tantas localidade mineiras, como Sabará, Tiradentes, São João del Rei, Mariana e Ouro Preto? "O fato", responde o próprio Teixeira, "é, aliás, digno de destaque e mais uma vez repisa o caráter profano e festivo da religiosidade barroca brasileira e mineira, mais preocupada com músicas e foguetórios que propriamente com unção e piedade; religiosidade sui generis, fascinada pela pompa e pela ostentação".


Detalhe de arte chinesa na Igreja do Ó, em Sabará