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Nº 1506 - Ano 32
27.10.2005
Estado laico, Estado amoral? Premissas de um debate*
João Baptista Villela**
m recente entrevista, Ernesto Garzón Valdés, um ex-exilado argentino que acabou professor na Universidade de Mainz, Alemanha, lembrava Leibniz para dizer que até mesmo Deus tem que respeitar as razões morais para se distinguir do diabo. Uma advertência oportuna para a sociedade brasileira nos dias que correm. Com efeito, parece que entre nós algumas pessoas acabam de descobrir que o Estado é laico. E, apressadas, concluem que o Estado laico deve conduzir-se com absoluto distanciamento da moral.
O fato de existir religiões que afirmem a igualdade essencial entre os homens, sustentem o direito à liberdade, defendam as minorias ou lutem pelos oprimidos não converte a igualdade, a liberdade, a solidariedade ou a tolerância em valores religiosos. Fosse assim, um Estado laico não deveria zelar pela probidade na administração pública, porque esta é também a conduta que muitas religiões desejam, pregam e promovem. Muito menos deveria punir o homicídio, já que não há religião no mundo que não o reprove. De resto, o que são idéias como probidade, honestidade, lealdade senão padrões universalmente aceitos na cultura ocidental mesmo por quem não professa religião alguma?
O Estado laico nasce com a Revolução Francesa, cuja divisa era justamente a tríade "liberdade, igualdade, fraternidade". O anticlericalismo notório dos arautos da Revolução Francesa não os impediu de proclamar, como seus, ideais que há muitos séculos faziam parte do mais indisputado núcleo das religiões cristãs. Quem pensa que igualdade, liberdade e fraternidade são uma descoberta da Revolução Francesa, certamente nunca leu as Epístolas de Paulo. Tampouco se pode acusar a República Federativa do Brasil de fazer proselitismo religioso porque o preâmbulo de sua Constituição afirma o compromisso com "uma sociedade fraterna".
Começa mal, assim, o debate sobre o aborto quando o governo anuncia que o quer manter fora de qualquer perspectiva moral. E alguns enxergam e saúdam aí uma louvável afirmação de laicidade do Estado.
Um consenso que se produza à margem das grandes questões morais que se propõem ao homem, hoje e desde sempre, não só é precário como cria o risco de um recorrente e perigoso adiamento. O velho tema do aborto aí está para confirmar.
*Artigo originalmente publicado na Revista Del Rey Jurídica, de Belo Horizonte (número 15, segundo semestre de 2005)
**Professor titular da Faculdade Direito
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