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Nº 1512 - Ano 32
08.12.2005

A arquitetura da objetividade

Eduardo Fajardo Soares*

saudoso Nelson Rodrigues, escritor, dramaturgo e apaixonado por futebol, criou certa vez um personagem que simbolizava as pessoas que só acreditavam no palpável, no mensurável, no matemático, nos cinco sentidos. Esse personagem nasceu depois que o Brasil conquistou o tricampeonato de futebol, no México, em 1970. Foi a forma que ele encontrou para gozar a cara daqueles que, após o fracasso da seleção na Copa anterior, em 1966, passaram a endeusar o futebol europeu, em particular o da Inglaterra, que sagrou-se campeã. Com seu futebol rigorosamente matemático, geométrico e baseado no preparo físico e na disciplina tática, os ingleses se transformaram em padrão e medida a serem seguidos.

Nelson Rodrigues dizia que, quando perdia, o Brasil perdia para si mesmo. Pois quando dispunha de um adequado preparo físico e de disciplina tática para potencializar sua habilidade natural, o "escrete canarinho" seria sempre o favorito absoluto diante do futebol óbvio e previsível dos adversários europeus. A partir daí, Nelson Rodrigues estendeu essa formulação teórica para os rígidos críticos de arte ou dogmáticos militantes esquerdistas. Para ele, personificavam o "idiota da objetividade".

Lembrei-me disso ao analisar as novas obras e as intervenções nos prédios existentes no campus Pampulha, projetadas e construídas pelo programa Campus 2000. Essas obras são marcadas por estruturas e instalações físicas rígidas, acabamento pobre e baixo conforto ambiental. Os novos prédios, projetados fora do contexto das edificações existentes, são de estética duvidosa e mutilam espaços consagrados.

A coordenação do Projeto Campus 2000 tentou justificar as obras e sua "espartana qualidade estético-ambiental" com a argumentação de que "estamos construindo como o povo brasileiro constrói, com suas dificuldades e parcos recursos". Mesmo acreditando na honestidade dessas intenções, somos obrigados a discutir que parâmetro construtivo é esse que inspira as obras do Campus 2000.

O brasileiro não constrói quarto individual para seus filhos. O povo vive amontoado nos poucos cômodos que consegue levantar. No entanto, por meio do Campus 2000, a Universidade construiu gabinetes individuais de até 12 metros quadrados para os docentes, enquanto os funcionários lutam para ter o mínimo de cinco metros quadrados para trabalhar, ainda assim divididos com outros colegas.

Acreditamos que trabalhar em dupla seria razoável, pois há de se ter certa privacidade para estudos, pesquisas e orientações. Isso também otimiza o uso da área construída, tão cara. Mas condeno a promiscuidade imposta pela pobreza real, que embola as pessoas. A comparação mais adequada seria com a classe média, que põe dois filhos em cada quarto ou quatro em beliches.

Comparar o Campus 2000 ao modo de construir das classes populares é, portanto, uma idéia descabida. Até porque o povo não levanta cômodos para deixá-los sem uso. Já os prédios da Universidade continuam produzindo espaços, principalmente os de ensino que, na maioria das vezes, são subutilizados ou subocupados.

Outra diferença está no fato de que o povo ergue suas janelas ao alcance dos olhos, pois a paisagem, o horizonte largo, a iluminação natural, quando disponíveis, são as melhores coisas de que podem desfrutar, principalmente do alto dos morros, penhascos e subúrbios descampados. E quando pode _ seja por instinto ou sob orientação _ o povo procura incrementar suas casas com detalhes e ornamentos feitos com materiais reciclados e inusitados, de modo a dotá-las de um padrão estético definido, que lhes confere identidade.

Enquanto isso, os prédios do Campus 2000 são dotados de janelas muito altas, impedindo os usuários de contemplarem a bela paisagem externa. Os defensores dessa arquitetura ortodoxa argumentam que, se as janelas fossem maiores para ficarem mais baixas, os custos seriam elevados, contrariando a política de economia das construções. A isso se juntam os acabamentos internos extremamente pobres, corredores centrais compridos e escuros e sem contato com o ambiente externo. Tudo somado aumenta a sensação de austero isolamento. E as fachadas, mesmo tentando seguir um bom padrão estético, não estabelecem qualquer diálogo ou harmonia com a linguagem dos prédios existentes, produzindo uma desagradável dissonância.

Para corroborar essas reflexões, recorro a depoimentos de três personagens que utilizam ou freqüentam esporadicamente os prédios do campus:

1 _ Uma autoridade que veio participar da inauguração de um dos prédios comentou que havia achado o edifício "uma gracinha", mas ficou profundamente decepcionada quando viu as janelas altas que a impediam de desfrutar a vista externa;

2 _ Uma professora de arquitetura disse que o campus estava virando um "samba do crioulo doido", dada à desarticulação dos novos prédios com os existentes;

3 _ No mais contundente dos depoimentos, uma funcionária respondeu, ao ser indagada se gostara da nova casa, que estava se sentindo no Ceresp, um conhecido presídio de Belo Horizonte.

Mas o principal exemplo dessa "arquitetura da objetividade" talvez seja o prédio da Escola de Educação Física. Com o argumento de que precisavam de mais áreas, seus idealizadores mutilaram e fecharam um espaço livre na "praça nobre" da entrada do prédio, elemento articulador de toda a construção. Antes já haviam improvisado, sob a bela e escultórica escada principal, um tosco cômodo para abrigar materiais, que permanece até hoje.

Essa obra é mais uma a refletir a ótica da objetividade, a visão de quem apenas vê espaços "desperdiçados" e é incapaz de buscar os espaços livres para a fruição e expansão dos horizontes.

* Funcionário da Escola de Arquitetura e presidente do Sindicato dos Arquitetos de Minas Gerais

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