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Nº 1530 - Ano 32
11.05.2006

A agonia silenciosa da educação*

Julio Groppa Aquino **

a década de 90, Caetano Veloso e Gilberto Gil conclamavam-nos a
pensar no Haiti, a rezar pelo Haiti. Mais recentemente, nossas tropas lá estacionaram para garantir a restauração da paz e da democracia locais. Há alguns dias, circulou outra notícia sobre o Haiti, ainda desalentadora para eles, porém mais constrangedora para nós.

Com o ranking apresentado no relatório da Unesco Educação para todos 2006 – professores e educação de qualidade, com base no ano de 2002, os haitianos ensinaram aos brasileiros algo tão sutil quanto essencial: que, mesmo em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade sociopolítica, é possível tratar as crianças melhor do que estamos fazendo. Os dados do relatório revelam algo impressionante e estranhamente familiar. Os brasileiros conseguiram a proeza vexatória de reprovar 21% das crianças matriculadas nos quatro primeiros anos do ensino fundamental. Enquanto isso, no mesmo período, os haitianos reprovaram 15% de seus alunos.

O Brasil ocupa o 16º posto entre os 45 países com as mais altas taxas de reprovação do planeta, estes em sua maioria rincões africanos oriundos de guerras civis. O Haiti, também em situação semelhante, obteve o 26º posto. Outros exemplos de países em situação melhor que o Brasil? Laos, Ruanda, Costa do Marfim, Mauritânia, Uganda, Guatemala, Marrocos, Namíbia, Cabo Verde, Senegal, Argélia, Suriname, Camboja, Nicarágua e Guiné.

Mas nos atenhamos à comparação com o Haiti. De largada, é necessário apontar que, diferentemente do restrito porcentual populacional da ilha caribenha, no caso brasileiro (o quarto contingente populacional planetário) estamos nos referindo a milhões de pessoas. Temos por volta de 30 milhões de crianças matriculadas no ensino fundamental público. Outros três milhões são atendidos pela escola privada.

Supondo que metade do contingente atendido pela escola pública esteja alocada nos primeiros quatro dos oito anos do ensino fundamental, o resultado das contas da reprovação nacional equivale a mais de três milhões de alunos, quase metade da população haitiana.

Eis aqui o quadro sem retoques do descalabro educacional que acomete o País. Os números acima revelam, curiosamente, as duas pontas do processo de segregação escolar e civil em curso entre nós: de um lado, mais de três milhões de candidatos a uma existência de quinta ou sexta categorias; do outro, idênticos três milhões de pessoas supostamente protegidas pelos intramuros da iniciativa privada, destinadas a um futuro talvez menos funesto, porém não menos duvidoso. Entre eles, uma massa de 26 milhões de crianças e jovens à mercê de uma formação intelectual indigente.

Tal estado de coisas aponta para um dado histórico inegável: a promessa não cumprida da democratização escolar brasileira. Para que seja possível analisar tal fenômeno em sua complexidade, é necessário ter em mente que o intrincado processo de democratização escolar se ancora numa tríade ético-política: acesso, permanência e aprendizagem efetiva.

Não se democratiza o ensino sem a universalização do acesso. Este, porém, não se sustenta por si só. É preciso que os alunos realizem sua travessia escolar de maneira consecutiva e progressiva (vide os danos da defasagem idade/série).

Essa travessia deve se traduzir em uma experiência significativa e instigante no que diz respeito à inteligibilidade de vida e do mundo à sua volta. Em suma, acesso, permanência e aprendizagem efetiva são termos indissociáveis da equação educacional – no Haiti e aqui.

Iniciado formalmente há quatro décadas, o processo de democratização de acesso aos bancos escolares (ainda longe de ser encerrado) encontra, já em seus primórdios, um primeiro ponto de inflexão – expresso ainda hoje naquilo que é delatado no relatório da Unesco. A chaga da reprovação e seu sucedâneo imediato, a evasão, não tarda a mostrar suas garras. Um contingente enorme de crianças sistematicamente reprovadas, em particular nos primeiros anos, era (e ainda é, segundo comprova o relatório) expurgado da vivência escolar, mormente em virtude da suposta falta de condições satisfatórias para o aproveitamento escolar – leiam-se pré-requisitos orgânicos, cognitivos, afetivos, familiares, etc.

E não há viva alma entre nós que não ateste a força performativa de tal argumentação, a qual encontrará seu apogeu na alegação onipresente de um quantum recorrente de “alunos-problemas” que povoariam as salas de aula. Daí para a educação escolar se converter em arremedo assistencialista é um passo, ou menos. Como resposta a tal embuste, as tentativas de democratização, agora não apenas do acesso mas também da permanência escolar, levadas a cabo a partir da década de 80, redundaram nas propostas de progressão continuada que, rechaçadas de norte a sul, têm se convertido no mais resistente bode expiatório da educação nacional.

Um consenso generalizado, equivocado e injusto, já que em conflito aberto com o direito inalienável à educação. Mal-afamadas, mal interpretadas e, principalmente, malconduzidas, tais propostas de progressão continuada conheceram – devido, em parte, à descrença reinante e, de outra parte, ao descaso voluntário dos profissionais – um efeito colateral cumulativo: o baixo teor da aprendizagem do alunado.

Sim, a massa de alunos continua freqüentando regularmente as salas de aula pelos oito anos mínimos e obrigatórios, mas não se apodera de um olhar qualitativamente distinto sobre a vida e o mundo. À moda de zumbis, os corpos encarnam passivamente (outras vezes, de modo ruidoso) as rotinas escolares por anos a fio, mas os espíritos não subtraem dali perspectivas relevantes para enfrentar o porvir. Sobrevivem aos usos e costumes escolares, mas não se valem do que estes poderiam legar de mais produtivo – pelo fato mesmo de que ali já não se oferta o sumo da condição humana corporificado em um silogismo filosófico, uma equação matemática ou um poema memorável, daqueles que nos acompanham indelevelmente vida afora.

Eis, aqui, o nó górdio da educação nacional, cujos efeitos assolam a grande média populacional brasileira (aquela situada entre as duas pontas do alunado) e que irrompem, mais cedo ou mais tarde, nos rankings sazonais que tanto nos assombram. Por meio dos resultados obtidos em tais levantamentos, desponta um país que, no quesito educacional, é objeto, se não de lástima, pelo menos de desonra. Desonra dos governantes, dos teóricos, dos dirigentes, dos profissionais e de todos aqueles que pregam, ou que ao menos ensejam, um futuro mais promissor para o País pela via de uma educação de qualidade.

Como nação, é certo que abdicamos de um dever antigo e já em desuso: o de educar os mais novos com vigor e responsabilidade. Trata-se, pois, de um despactuamento coletivo de que ninguém, absolutamente ninguém, tem a licença de se evadir. Parafraseando Caetano e Gil: Não, o Haiti não é mais aqui. Seria mais seguro deixar as crianças nas escolas de lá.

*Artigo publicado em O Estado de São Paulo no dia 30 de abril
**Professor da Faculdade de Educação da USP


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