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Nº 1534 - Ano 32
08.06.2006

Triste retrato do contemporâneo

João Gabriel Marques Fonseca e
Washington Cançado de Amorim*

s cerimônias de formatura da atualidade deixam no ar uma grande dúvida: o que vale mais – a comemoração e a confraternização ou o show? Nos últimos tempos, essas cerimônias, assim como os casamentos, as festas de debutantes e até os aniversários de crianças parecem ter assumido definitivamente o status de grandes shows, nos quais o espetáculo eclipsa os aspectos afetivos e rituais e transforma a cerimônia em algo que existe para ser visto e não para ser vivido, no sentido mais profundo da experiência existencial.

A formatura da Faculdade de Medicina da UFMG, em janeiro último, da qual tivemos a honra de participar como homenageados, assumiu de tal forma o ar de espetáculo que deixou uma boa parte dos presentes em estado de perplexidade – foi um retrato cru e sem retoques da contemporaneidade.

Como de praxe atualmente, a festa foi um frenesi de gruas, câmeras, música de qualidade duvidosa, som ensurdecedor e uma sucessão alucinante de imagens preparadas para inebriar a multidão de espectadores. Em meio a todo esse frenesi, ficamos especialmente chocados com algumas cenas deploráveis.

Exceção feita ao patrono, ao paraninfo e aos dois professores homenageados especiais, todos os demais professores homenageados foram relegados a um constrangedor terceiro plano e chamados a participar da mesa após uma grande lista de convidados que não participaram direta nem indiretamente da formação de nenhum dos formandos. Achamos justo e indispensável que representantes de órgãos de classe e de associações acadêmicas sejam convidados para a mesa, mas, por uma questão de coerência e preeminência, deveriam ser chamados após os professores homenageados.

A pirotecnia de cinegrafistas e mestres de cerimônia protagonizou um espetáculo grotesco. Durante os discursos da oradora da turma, do paraninfo e do patrono, os alunos eram filmados em close up ao que reagiam com acenos, fisionomias e gestos que são naturais à emoção do momento, mas que eram freneticamente respondidos pelo público com o toque de centenas de buzinas de ar comprimido e apitos num ruído ensurdecedor que impedia que se ouvisse qualquer coisa do que estava sendo dito pelos oradores.

Até aqui, digamos que esse desrespeito seja compreensível pela euforia do momento. Mas a cena se tornou surreal quando um formando iniciou a leitura de um texto em homenagem aos pais ausentes. O rapaz, visivelmente transtornado pela lembrança do pai ausente, lendo um texto emocionante, foi interrompido pelas mesmas filmagens em close up e sua conseqüente explosão sonora de buzinas e apitos, no mais profundo desrespeito à dor alheia.

O registro das imagens passa a ser mais importante que a cerimônia em si. O que se vai guardar parece estar acima de tudo o que se possa viver no momento. Vale mais a pena um close up registrado em DVD que a presença daqueles que contribuíram para a sua formação.

No momento em que alguns alunos foram prestar uma homenagem aos colegas da comissão de formatura, assistiu-se ao lamentável espetáculo de dança do gênero “boquinha da garrafa” protagonizado por duas formandas.

No gran finale, um clip de 18 minutos de duração com inumeráveis cenas efêmeras, que misturavam fotos dos formandos quando crianças, flashes de festas, filmagens de salas da Faculdade de Medicina, de instalações do Hospital das Clínicas, de ambulatórios do internato rural, de pontos turísticos de Belo Horizonte e de tomadas de alunos muitas vezes em situações ridículas, sonorizadas numa intensidade de fazer inveja às turbinas de jatos na decolagem. Esse clip arrematou o grotesco num tumulto alucinógeno sem nenhum sentido além do entretenimento entorpecente e sem qualquer resquício estético. Inverteram-se os valores: o que era formal, solene e motivo de grande orgulho para pais e mestres tornou-se o momento da farra, do barulho, dos confetes e serpentinas. O baile, por outro lado, a princípio destinado à informalidade, à dança, aos gritos de alegria e confraternização, tornou-se o momento dos rigores dos vestidos longos, dos ternos impecáveis e da valsa solene.

Essa formatura, como tantas outras na atualidade, é uma espécie de síntese de uma modernidade efêmera, vazia de sentido, pervertida pela cultura televisiva (a cultura do espetáculo), uma espécie de pulsão escópica que extasia pelo que se vê e não pelo que se realiza e, por isso, louva a aparência.

Esses espetáculos demonstram o grande vazio moral e existencial e a hipotrofia da consciência crítica por que passamos. Tudo se torna etéreo, volátil, banal, sem consistência, robotizado, numa geléia geral que mistura assepsia de compromissos, indiferença, ideais prosaicos, hedonismo e consumismo, situação na qual o humano é rebaixado à categoria de objeto.

É lastimável que a formatura de uma turma de medicina de uma das mais respeitadas instituições federais de ensino superior desse país não escape, pelo menos um pouco, dos desmandos da sociedade do espetáculo. Formar-se numa universidade pública de alto padrão é um enorme privilégio nesse país de desigualdades; todos investiram e receberam investimentos que lhes permitiram concluir um curso de alta complexidade e alto custo. Todos serão profissionais dos quais se espera um mínimo de refinamento ético e estético.

Enquanto professores universitários devemos fazer mea culpa; somos todos co-responsáveis por isso. A universidade tem sido incapaz de se contrapor às forças avassaladoras da sociedade do espetáculo e esse estado de coisas continuará contribuindo para abalar ainda mais a já combalida credibilidade da classe médica na sociedade atual.

*Professores da Faculdade de Medicina da UFMG

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