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Nº 1549 - Ano 32
25.09.2006

Mensageiros da memória

Desenvolvida por professores do ICB, linhagem de camundongos modificados geneticamente deverá incrementar estudos sobre demências

Ana Maria Vieira

uantas vidas humanas já foram salvas por camundongos? É provável que o número seja bem maior do que o alcançado pelos profissionais de saúde. Objetos de experimentos científicos, são eles que contribuem para esclarecer o comportamento de inúmeras doenças.
Rodrigo César Carvalho Freitas

Charge ilustra dificuldade
de reconhecimento social
observada em camundongos
com deficiência de acetilcolina

Recentemente, uma nova linhagem se incorporou a esse exército de benfeitores: trata-se de um animal geneticamente modificado que deverá ampliar a compreensão sobre demências, como a doença de Alzheimer, e propiciar o desenvolvimento de novas drogas. O trabalho para produzir o camundongo iniciou-se há sete anos. Em 7 de setembro, seus resultados foram publicados na revista norte-americana Neuron, uma das mais conceituadas no meio científico.

“Desenvolvemos modelos animais com deficiência na liberação do neurotransmissor acetilcolina”, diz o professor Marco Antônio Máximo Prado, do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia Bioquímica e Molecular. Ele coordenou a pesquisa junto com Vânia Prado, professora do departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB.

Os neurotransmissores atuam como mensageiros químicos em diversas funções do organismo. “Já sabíamos que a acetilcolina é fundamental para o movimento voluntário, além de ter outras ações no sistema nervoso periférico. No cérebro, ela está associada a funções como memória, aprendizagem, atenção e sono”, resume Marco Prado. O professor ressalta, contudo, que ainda não são conhecidos todos os papéis desse mensageiro e que os métodos até agora utilizados para analisá-lo valem-se de drogas que, por não serem específicas, afetam outras funções no organismo.

A partir dos novos modelos animais, os pesquisadores poderão desenvolver estudos com maior precisão. A repercussão já pode ser sentida. “Tão logo publicamos os resultados da pesquisa, recebemos pedidos para exportar os camundongos para universidades norte-americanas e canadenses, além de pedidos, já atendidos, de envio para outras universidades brasileiras”, revela Marco Prado. O trabalho envolveu a UFMG, a PUC-RS e a Duke University Medical Center, dos Estados Unidos.

Bombas vesiculares
Nas linhagens de camundongos geneticamente modificados produzidas pelo grupo, a liberação da acetilcolina foi reduzida em níveis que variavam de 45% a 70%. A segunda inovação do trabalho dos pesquisadores consistiu, exatamente, em estabelecer procedimento para controlar esses níveis. Segundo o professor, o neurotransmissor encontra-se presente nas vesículas existentes nas terminações nervosas de neurônios. Cabem às bombas existentes nas vesículas – identificadas como transportadores vesiculares de acetilcolina (VAChT) – regular a entrada dessa substância.
De modo inédito, os cientistas conseguiram alterar a quantidade de bombas nas vesículas e, portanto, sua capacidade de preenchimento com neurotransmissores. “Outros laboratórios tentaram estratégias similares, mas recorreram a diferentes proteínas ou interferiram na produção da acetilcolina. Ao final, não tiveram sucesso em produzir animais vivos com menor liberação do neutransmissor”, observa Prado, ao salientar a diferença do procedimento adotado por sua equipe. “Lidamos com o estágio final da liberação dessa substância, pois estávamos interessados em modelar organismos que tivessem essa função reduzida”.

As vesículas que liberam os neurotransmissores cumprem importante papel na comunicação entre neurônios ou entre um neurônio e uma célula-alvo – como as da musculatura esquelética, envolvidas com o movimento e a força necessária para falar, respirar e alimentar. Quando neurônios são estimulados, as vesículas encostam na membrana, abrindo um orifício, por meio do qual a acetilcolina escapa, permitindo sua associação com proteínas da membrana da célula-alvo e avisando, por exemplo, que o músculo deve contrair e produzir movimento. A redução da capacidade em expelir a substância pode acarretar danos ao organismo.

“Utilizamos a curiosidade natural dos camundongos em explorar novos objetos ou outros animais e demonstramos que aqueles que foram geneticamente modificados apresentaram déficit de memória social e de reconhecimento de objeto, além de fraqueza muscular”, exemplifica Marco Prado. O quadro apresentado é semelhante ao de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer. Nela, o nível de acetilcolina é reduzido progressivamente, devido à destruição dos neurônios que produzem este neurotransmissor. Apesar da semelhança, Prado observa que os camundongos não são modelos para reproduzir a doença de Alzheimer, pois nela estão presentes outros fatores como a morte de neurônios. “Eles podem ser modelos apenas para alterações neuroquímicas encontradas nessa doença e em outras formas de demência”, especifica.

O camundongo produzido com perda de 70% de secreção do neurotransmissor modela os sintomas que ocorrem em certos tipos de miastenias, inclusive congênitas. “Com essa característica, ele não consegue fazer exercícios físicos por mais de cinco minutos e tampouco sustentar o próprio peso, se colocado de cabeça para baixo. Já a segunda linhagem, que secreta de 45% a 50% de acetilcolina, apresentou, como a primeira, deficiência cognitiva, mas não foram observadas alterações na força muscular”, compara o professor. Segundo ele, as sinapses do cérebro têm menos vesículas do que as neuromusculares. Por isso, o organismo provavelmente apresenta margem de segurança maior nestas últimas quando reduz a secreção de acetilcolina.

sinapses Associação entre a terminação nervosa do neurônio e uma célula-alvo

Dupla cidadania

O novo camundongo geneticamente modificado tem dupla cidadania. Projetado na UFMG, mas nascido nos laboratórios da Universidade de Duke durante um programa sabático realizado por Marco e Vânia Prado, ele migrou para o Brasil, “radicando-se” no laboratório de Neurofarmacologia do ICB. Como se trata de um organismo natural alterado, a lei permite que ele seja patenteado. O pedido já foi depositado nos Estados Unidos e a titularidade será dividida entre as duas universidades.

Na UFMG, todos os procedimentos para a criação da linhagem foram aprovados pelo Comitê de Ética em Experimentação Animal. A pesquisa nessa área é considerada cara devido a gastos com equipamentos, recursos humanos de alto nível e manutenção dos animais em biotério. O professor Marco Prado estima que, até o momento, foram investidos 500 mil dólares no trabalho. Os resultados são promissores, até porque o Brasil é um grande importador de cobaias. “Esses modelos animais são cruciais no estudo de doenças em humanos, diz.