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Nº 1550 - Ano 32
2.10.2006

Entrevista / Fabrício Rodrigues dos Santos

Luzia não morreu

Ana Maria Vieira

preciso reconhecer que se faz história com genética”. A reflexão, do biólogo e professor da UFMG, Fabrício Rodrigues Santos, revela parte do embate mantido entre as áreas do conhecimento dedicadas ao estudo do povoamento do continente americano. Mas ele sinaliza, igualmente, o esforço em criar pontos de convergência em tais estudos.

Foca Lisboa

Fabrício Santos: história com genética

Exemplo dessa dualidade pode ser identificada em um campo ainda ignorado no país: a antropologia biológica. Caberá a Ouro Preto ser o palco do primeiro “levante” desses especialistas brasileiros. Como sede do 1° Congresso Nacional de Antropologia Biológica e do IX Encontro da Associação Latino-Americana que aglutina esses estudiosos, a cidade assistirá, no período de 11 a 14 de outubro, a exposições inéditas de pesquisas sobre nossa ancestralidade. A diversidade étnica, entre nós, não nasceu com a modernidade, e a morfologia do fóssil Luzia, dada como extinta, sobrevive em povos indígenas do Brasil e do México, afirma Santos, um dos organizadores do evento, nesta entrevista ao BOLETIM.

Como está a constituição do campo da antropologia biológica no país?
A antropologia é uma só, mas, no Brasil, ela se ligou a uma linha marcadamente social. Entre nós existem poucos antropólogos na especialidade biológica, mas esse tipo de pesquisa é bastante comum em outros países. Há indicativos de que o panorama está mudando, pois, no CNPq, até há pouco tempo, a área não era reconhecida pela antropologia. Proposta de inclusão foi aceita apenas recentemente. Quanto à formação do bioantropólogo, somente o Museu Nacional da UFRJ, no Rio de Janeiro, oferece curso na área. Temos o objetivo de expandir esse campo. Por meio dele, é possível investigar a humanidade do ponto de vista biológico, recorrendo por exemplo, aos ossos, ao DNA ou aos alimentos que ela consome.

Quais teses sobre o povoamento das Américas estão em vigor?
São inúmeras, mas a última tentativa em direção a uma visão consensual data de 1986, e ficou conhecida como modelo das três migrações. O consenso deriva do método utilizado, que se valeu de dados da antropologia, lingüística e genética. Sua tese básica era de que existiam três grupos de indígenas no continente: os ameríndios – compostos por todos os que ocupam a América do Sul, a América Central e 90% dos que se encontram na América do Norte; os na-denes – identificados como os apaches e navarros e outros “peles vermelhas” presentes em determinadas regiões dos Estados Unidos, Canadá e Alasca – e os esquimós, do Círculo Polar Ártico. De acordo com eles, a primeira migração teria ocorrido há 12 mil anos e dado origem aos ameríndios. Da segunda, em torno de oito mil anos, teriam surgido os na-denes, e da terceira leva migratória, há quatro mil anos, os esquimós.

Qual é a sua visão?
Integrei grupo que publicou o primeiro artigo, em 1995, sobre a ocorrência de uma migração principal para a América, que teria originado todos os nativos americanos. Isso teria acontecido há cerca de 20 mil anos. Os dados genéticos com os quais trabalhávamos não eram compatíveis com a tese das três migrações. É preciso observar que a genética trabalha com dados que guardam independência entre si, pois nem sempre são recolhidos das mesmas regiões do DNA. Como o genoma humano possui três bilhões de bases, é possível gerar volume imenso de informações e, para a pesquisa, há vantagens e desvantagens. Está claro que a genética não explica tudo e é preciso recorrer à antropologia física, à arqueologia e à lingüística, por exemplo. A tendência dos estudos é a multidisciplinaridade. Contudo, esse era o perfil do modelo de 1986 e ele está superado. Migrações independentes para os três grupos indígenas não fazem sentido nem com genética, tampouco com arqueologia ou lingüística.

Como Luzia se enquadraria nessas visões sobre povoamento?
Luzia se enquadra em outra visão, oriunda da antropologia física. Alguns pesquisadores que se dedicam a essa especialidade aceitam a ocorrência de uma migração na perspectiva da unidade dos povos indígenas, mas ressaltam que Luzia possui morfologia diferente e não seria ancestral das populações atuais. Seu grupo seria de migração independente, que chegou anteriormente à América e não deixou descendentes. Então, na verdade, para eles teria havido duas migrações.

Foi realizada análise de material genético de Luzia?
O professor Sérgio Danilo Pena, da UFMG, tentou, mas o DNA dela não foi preservado. Nos trópicos, esse material se decompõe rapidamente.

A origem geográfica de Luzia é distinta da de outros grupos?
Não. Eles teriam vindo do nordeste asiático. Há 15 mil anos, na Ásia, os crânios das pessoas não apresentavam morfologia do tipo mongólica. Naquela época, todos eram parecidos com Luzia. De acordo com esses dados, é possível afirmar que, se a migração ocorreu há pelo menos 18 mil anos, apenas “Luzias” vieram para a América. O professor Walter Neves, que estudou o fóssil detalhadamente, não usa nossas datas. Ele considera que a origem dos povos contemporâneos é de migração recente, ocorrida há 12 mil anos, com populações estritamente mongólicas. Vários dados recentes de antropologia física, contudo, demonstram que a tese é incorreta.

O Congresso traz novidades sobre essa questão?
Rolando Gonzalez, pesquisador argentino, divulgará dados ainda não publicados, demonstrando que a morfologia de Luzia não morreu. Ela sobrevive em regiões do México e na América do Sul e em tribos da Amazônia brasileira. Haverá também exposição de pesquisas sobre crânios, revelando que os indígenas eram muito mais heterogêneos do que se supunha, além de estudos lingüísticos, arqueológicos e genéticos, confirmando a tese de que o povoamento da América ocorreu há pelo menos 18 mil anos.

Luzia Datado de 13.500 anos, é considerado o mais antigo fóssil das Américas. Foi desenterrado em 1975 em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.