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Nº 1590 - Ano 34
12.11.2007

O efeito Dossiê Dops

Dissertação analisa impactos da disputa dos acervos do Dops
na construção do direito à informação

Ana Maria Vieira

Ao usuário distraído que percorra a página eletrônica do Arquivo Público Mineiro (APM), as informações sobre um acervo de 250 mil fotogramas nele recolhido em 1998 soam corriqueiras. Com um pouco mais de atenção, contudo, percebe-se que se trata de um dos conjuntos de dados mais expressivos da história mineira e que, há apenas nove anos, deixou de ser objeto de acirrada disputa política entre segmentos sociais.

A trajetória dos documentos, produzidos pelas atividades do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops) entre os anos de 1927 e 1982, poderia inspirar enredo cinematográfico. Pesquisadores, contudo, têm extraído deles variadas análises sobre um longo período da história do país. Exemplo desse trabalho pode ser encontrado em dissertação de mestrado de Shirlene Linny da Silva, defendida há duas semanas na Escola de Ciência da Informação. De modo original, ela decidiu se debruçar sobre o processo de recolhimento dos denominados arquivos da repressão para tirar valiosas conclusões relativas à construção dos direitos à informação no Brasil.

Extinto em 1989, o Dops atuava no controle das atividades políticas dos movimentos sociais. Conforme análise realizada por Shirlene Linny, os temas comunismo, integralismo e subversão eram os mais recorrentes nas investigações do órgão. A massa documental produzida entre 1927 e 1982 inclui relatórios policiais, depoimentos, prontuários, panfletos, cartazes, livros, revistas e fotos. Pelo menos 63% das pastas foram abertas e encerradas entre 1927 e 1963, enquanto 31% delas tiveram sua produção concentrada durante a ditadura militar.

Com o fim das atividades do órgão, a Assembléia Legislativa determinou, por meio de instrumento legal, aprovado em 1990, o recolhimento de todos os documentos ao Arquivo Público Mineiro. A área de segurança pública, no entanto, alegou ter incinerado o acervo. Oito anos mais tarde, após evidências de que essas informações continuavam sob a guarda policial, a Assembléia instaurou Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), localizou rolos dos documentos microfilmados e providenciou, enfim, sua transferência para o Arquivo Público. Os arquivos originais nunca foram localizados.

Julius
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Shirlene Linny: reflexão sobre o direito à informação à luz da polêmica dos arquivos do Dops

De acordo com Shirlene Linny, conclusões da CPI mostravam que o material recolhido constituía acervo parcial e que as informações geradas pela vigilância política e social dos regimes militares se completavam com documentos de outros órgãos de segurança pública. A percepção do problema levou os deputados estaduais a alterarem a Lei 10.360, que previa o recolhimento do material produzido unicamente pelo Dops. “Apesar de sua aprovação, os arquivos que complementavam o acervo desse órgão nunca foram encaminhados ao APM”, diz.

Disputa

O impacto da disputa em torno da posse dos documentos produzia então importante mudança no arcabouço jurídico que regulava o acesso às informações governamentais. “Os aspectos legais e os das disputas políticas se mostram muito imbricados”, reflete Shirlene. Expandindo sua análise, ela observa que, no plano federal, no mesmo período, disputas pelo acesso e controle dos dados produzidos por serviços de inteligência na área civil e militar também iriam influenciar a regulação das normas do direito à informação no país.

Exemplo disso é a inserção, no texto da Constituição de 1988, de garantias ao amplo acesso a dados da administração pública e a informações produzidas sobre os indivíduos, por meio do habeas data. A história, no entanto, não se esgota aí. Regulamentações posteriores sobre essas garantias produziram extenso conjunto de leis, estabelecendo, na prática, barreiras para o exercício do direito às informações governamentais. Normas sobre sigilo e categorias de autoridades responsáveis em classificar o grau de acesso aos documentos sofreram inúmeras alterações, à medida em que ocorriam pressões sociais.

O vai-e-vem dos prazos para acesso aos documentos da administração pública ou sobre pessoas também decorreu desse processo.
Shirlene Linny exemplifica a dimensão do problema com a questão dos documentos do Dops em Minas Gerais: durante a CPI, delegados alegavam a impossibilidade de torná-los públicos, pois trariam referências a questões da intimidade e honra das pessoas neles citados. Segundo lei federal, arquivos dessa natureza produzidos pelo Estado só podem tornar-se públicos após o prazo de 100 anos. Tão logo, no entanto, o acervo foi recolhido, técnicos responsáveis pelo seu tratamento verificaram que parcela diminuta se enquadraria nessa categoria.

A via mineira

A resistência apresentada parece ser o viés daquilo que se tornaria a via mineira para a a transição democrática: diversos integrantes de setores da segurança pública ligados à repressão continuaram exercendo suas funções. A instituição dos instrumentos legais, passo essencial no processo de abertura das informações, não era suficiente para garantir o acesso a elas. O exemplo mineiro indicava que isso só se concretizaria com a mobilização do poder legislativo e de setores organizados da sociedade civil.

Refletindo sobre a questão, Shirlene cita estudo da Unesco sobre arquivos da repressão, em que a organização recomenda a retirada dessa modalidade de acervo das instituições que os produziram. “Só assim, eles entram em lógica diversa da que motivou aqueles registros, direcionando-se ao provimento do direito e à produção de pesquisa”, completa a pesquisadora.

Marca autoritária

A polícia política se institucionalizou no país durante a década de 1920, período de intensa agitação em todo o mundo e momento em que os estados brasileiros procuravam se fortalecer dentro da lógica do nascente federalismo. Denominada como Quarta Delegacia Auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal, a primeira organização federal é criada por decreto em 1922, com o objetivo de garantir a ordem e a segurança pública, colocadas em “risco” por imigrantes revolucionários.

“Com esse gesto, que logo se desdobraria na criação de outros órgãos policiais semelhantes, o estado republicano brasileiro consolidava sua marca autoritária, evidenciando a incapacidade de resolver conflitos e dissensões internas através de mecanismos democráticos”, analisou o professor Rodrigo Patto, do Departamento de História da UFMG, em artigo sobre o tema publicado na edição de junho de 2006 da Revista do Arquivo Público Mineiro,

A iniciativa do governo federal fez escola e, em 1924, o estado de São Paulo cria a Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), logo imitado pelo governo mineiro, em 1927, que a nomeou Delegacia de Segurança Pessoal e Ordem Política e Social. De acordo com o pesquisador da UFMG, ao longo dos anos essas organizações receberam diversas denominações e sofreram grandes mudanças em suas estruturas. A expansão ocorreu especialmente nas décadas de 40 e 50, mas é nos anos 60, durante os governos militares, que elas atingem o auge de suas atividades de combate ao comunismo.

Nos anos seguintes, o “perigo vermelho” arrefece em todo o mundo: o país se redemocratiza e o Dops é extinto. Fica, então, como analisa Rodrigo Patto, “a convicção de que, entre as tradicionais prerrogativas da cidadania, deveria figurar um novo direito, o direito à informação”. O professor coordenou, na UFMG, parceria com o APM para tratamento das informações do acervo do Dops.

 

Título: Construindo o direito de acesso aos arquivos da repressão: o caso do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais
Autora: Shirlene Linny da Silva
Defesa: 26 de outubro de 2007, na Escola de Ciência da Informação
Orientadora: Maria Guiomar da Cunha Frota