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Nº 1610 - Ano 34
16.05.2008

Cecília e suas histórias

cecilia
Cecília e a sobrinha-neta Ângela, na Fazenda de Santa Cruz, em Piedade do Rio Grande (MG)

Irmãos registram em livro versões de escravos e descendentes para contos europeus

Itamar Rigueira Jr.

 

Tinha um moço que a mãe dele era pobre. Ele num tinha nada. Aí, tudu dia pescava aqueles pexe. Aí, quando chegô um dia, ele foi, chegô assim na bera do rio e tava pescano. Aí, nisso, chegô aquela moça, aquela princesa munto bunita! (A garça).

Era uma vez uma mulher negra de fala mansa, analfabeta, que trabalhava como lavadeira na Fazenda de Santa Cruz, entre outras propriedades da região de São João del-Rei. Quando ficava para dormir em Santa Cruz, Cecília não descansava quando escurecia: tornava-se o centro das atenções ao contar histórias de reis, fadas e bichos para as crianças no chão de terra batida da cozinha, ao redor do fogo, até bater o sono, dela ou dos ouvintes.

A moral da história é que Cecília virou livro. Os irmãos Ana Emília, Maria Selma e José Murilo de Carvalho – cientista político, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras –, integrantes da platéia de Cecília, reuniram algumas daquelas narrativas, pesquisaram a origem das histórias e o percurso dos antepassados da contadora. O resultado é Histórias que a Cecília contava – incluindo narrativas de sua sobrinha Maria das Dores Alves, a Dóia –, produção da Editora UFMG com apoio do Instituto Cultural Amilcar Martins.

Em seu prefácio, José Murilo lembra que cenas semelhantes se repetiam Brasil afora. Pretas velhas como Maria Cecília de Jesus aparecem nos relatos e memórias de Monteiro Lobato, Pedro Nava e José Lins do Rego. “Ironicamente”, continua ele, “eram os escravos ou ex-escravos que serviam de (...) traço de união entre gerações, de guardiães da tradição, de fontes de formação de um sentimento nacional”. José Murilo comenta que a arte de Cecília está claramente vinculada à tradição africana do akpalô (contador de histórias, na língua nagô), e restava saber como seu repertório, proveniente da Europa e especialmente de Portugal, chegou ao conhecimento dos antepassados mais próximos de Cecília. Ele desfia algumas hipóteses relacionadas a antigos proprietários portugueses de terras e escravos na região – eles teriam ensinado as histórias aos escravos.

José Murilo ressalta que as histórias de Cecília eram marcadas pela combinação fonética do português arcaico e de línguas africanas, em que se destacam características como “a alergia a consoantes e a paixão pelas vogais”. Outra faceta que chama a atenção do historiador é que bichos e homens se espancam e se matam, o que ele credita à proveniência medieval européia. Se os irmãos Grimm “amaciaram” os contos, “os antepassados de Cecília parecem ter tido acesso a versões não domesticadas”. A violência não assustava as crianças – talvez, especula José Murilo, porque elas percebessem a natureza das fábulas ou “porque morte e sangue de animais fossem parte do cotidiano das fazendas”.

Agulha no palheiro

A Ana Emília de Carvalho, mais nova dos irmãos organizadores da obra, coube a pesquisa genealógica, hobby que a revisora de textos levou desta vez a conseqüências mais profundas. Em quatro anos de pesquisa, visitou fazendas, arquivos e inventários da região, órgãos públicos e uma igreja mórmon, que guarda registros de todo o Brasil. Conseguiu recuar três gerações na genealogia de Cecília e duas na do marido dela, Martinho. “Foi como procurar agulha no palheiro, mas uma coisa puxava a outra”, conta. Neta de escravos, Cecília (1905-1984) era filha de pais nascidos na vigência do Ventre Livre e que continuaram devendo obrigações aos proprietários até a abolição.

As origens e as relações entre as histórias de Cecília e os contos europeus foram o tema da pesquisa de Maria Selma de Carvalho, que partiu de observações de autores como Câmara Cascudo e das gravações feitas com Cecília e lançou-se ao vasto mundo da internet para descobrir novos dados, incluindo as versões originais das histórias cantadas. Segundo ela, foi uma experiência emocionante. “Cecília faz parte de nossa vida na fazenda, produzir esse livro foi uma forma de recordar e agradecer-lhe”, diz Maria Selma.

Livro: Histórias que a Cecília contava
Organizadores: José Murilo de
Carvalho, Maria Selma de Carvalho
e Ana Emília de Carvalho
Editora UFMG
Preço: R$ 37