Busca no site da UFMG

Nº 1619 - Ano 34
04.08.2008

entrevista

Homem, branco, rico e heterossexual

Paula Santos*

Paulo Cerqueira
regina
Regina Dalcastagnè: exclusão pela literatura

O romance contemporâneo brasileiro constrói uma sub-representação de classes sociais menos privilegiadas. O negro, a mulher, o pobre, o homossexual estão ausentes ou representados de forma estereotipada na literatura brasileira. É o que mostra pesquisa desenvolvida pela professora Regina Dalcastagnè e por grupo de alunos da Universidade de Brasília (UnB). Eles realizaram um recenseamento literário inédito, buscando identificar a personagem comum da literatura brasileira contemporânea. Os resultados do estudo foram apresentados na Faculdade de Letras em junho passado, quando a professora proferiu a palestra A personagem do romance brasileiro contemporâneo, e na entrevista abaixo concedida ao BOLETIM.

Regina Dalcastagnè é doutora em Teoria Literária pela Unicamp e professora de Literatura da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e edita a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Autora de Entre fronteiras e cercado de armadilhas: problemas de representação na narrativa brasileira contemporânea, ela tem pesquisado o espaço ocupado por grupos sociais em posição subalterna na narrativa brasileira dos últimos 50 anos.

Como e com que intenções nasceu a pesquisa?

A pesquisa teve início com um sentimento de desconforto diante da ausência, em nossos romances, de dois grandes grupos: os pobres e os negros. Ao pensar em fazer um grande mapeamento da personagem do romance brasileiro atual – com obras publicadas entre 1990 e 2004 –, tentamos entender esse fenômeno a partir da compreensão do que se sobrepõe a esses grupos. Esse tipo de ausência costuma ser creditada à invisibilidade desses segmentos na sociedade brasileira. Neste caso, os escritores estariam representando justamente essa invisibilidade ao deixar de fora aqueles que são postos à margem de nossa sociedade.

Por que o pobre, o negro, o homossexual e o portador de deficiência física são tão mal representados pela literatura brasileira contemporânea? Pode-se pensar na literatura enquanto testemunho da realidade?

Determinados grupos são excluídos de nossa literatura porque são excluídos também da sociedade, e nesse sentido a literatura pode ser entendida, sim, como “testemunho da realidade”. Mas essa pesquisa não comunga de nenhuma noção ingênua da mimese literária – a idéia de que a literatura deve servir como “espelho da realidade”.

O problema que se aponta não é uma imitação imperfeita do mundo, mas a invisibilidade de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais. A literatura é um artefato humano e, como todos os outros, participa de jogos de força dentro da sociedade. A invisibilidade e o silenciamento são relevantes politicamente e indicam o caráter excludente de nossa sociedade. E do ponto de vista estético, eliminam de nossa literatura outros modos de ver e dizer o mundo que poderiam enriquecê-la.

Como se configura a presença feminina nos romances?

As autoras não chegam a 30% do total de escritores editados. E isso tem reflexo na sub-representação das mulheres como personagens em nossa ficção: menos de 40% delas são do sexo feminino. Além de minoritárias, as mulheres também têm menos acesso à “voz”, isto é, à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas das histórias.
Há diferença significativa entre a produção das escritoras e dos escritores. A menor presença das mulheres entre os produtores se reflete na menor visibilidade do sexo feminino. As mulheres constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista, que passam despercebidas pelos autores homens, e problematizam questões marcadas por estereótipos de gênero. Tudo isso quando as personagens são brancas; caso contrário, as marcas de distinção são bastante reforçadas, talvez até mais do que nas obras masculinas.

A coincidência entre raças e posições sociais dos autores e suas personagens deve ser creditada à facilidade dos autores em falar do seu próprio meio ou à busca por identificação do público-leitor?

Escritores criam a partir das suas vivências, e também estão em busca da identificação do seu leitor, normalmente de classe média. Fora isso, eles constroem suas personagens a partir de modelos da tradição literária. E aí entra um problema sério: onde estão as protagonistas mulheres, negras e pobres em nossa literatura? É preciso um esforço muito maior para criar uma personagem assim do que para construir um homem, branco, urbano e escritor, por exemplo. Há inúmeros modelos deles a nosso dispor.

Como a pesquisa se precaveu para não resvalar em um policiamento ideológico, de forma a não comprometer o princípio da liberdade do escritor?

A pesquisa não tem o objetivo de “policiar” a atividade dos autores brasileiros. Não os estamos julgando individualmente, mas indagando sobre um conjunto de obras. Queremos mostrar e entender como o romance brasileiro recente – aquele que passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais amplo e influencia novas gerações de escritores – escolhe seu foco de interesse e como representa os grupos sociais. O que não quer dizer que o pesquisador não possa criticar a literatura a partir desses dados. A literatura não está acima de qualquer suspeita. Ela é um discurso social, sempre contaminado ideologicamente, e pode trazer preconceitos e estereótipos. Também não acreditamos que exista liberdade absoluta na hora de escrever. Todo escritor está cercado de constrangimentos.

*Estagiária de jornalismo da Faculdade de Letras (Fale)