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Nº 1644 - Ano 35
16.3.2009

opiniao

Agitação estéril

Ivan Domingues*

Mais um ano acadêmico se inicia, todo o imenso dispositivo da Universidade será reativado, novos estudantes chegarão, outros sairão e descobrirão a realidade dura do mercado. Paralelamente, já em seus gabinetes e laboratórios, colegas voltarão às atividades depois de dois meses de recolhimento ou – os mais afortunados – em um canto de um “Lab” e de uma boa biblioteca de Paris, Boston ou Heidelberg. Recomeçado o ciclo, a perspectiva são as reuniões, as bancas, os relatórios, a burocracia, os desgastes dos semestres compridos com quatro ou mais cursos – tudo isso somado à usura das coisas e ao fardo dos anos, capazes de minar as energias dos mais fortes e as paixões dos mais obstinados, lançando-os à aposentadoria precoce.

Mas há as compensações, que são poucas, e os reconhecimentos, nem tantos, num ambiente em que impera a vaidade. O que conta são as evasões reparadoras, com os colóquios e os convites se multiplicando ao longo do ano, cujo resultado, junto com o louvável fim do paroquialismo, é o chamado “turismo acadêmico”. Certamente, muitas áreas têm nos congressos os pontos altos e não faltam colóquios de qualidade, criando comunidades nacionais e internacionais; porém, a indústria do turismo e as coações do publish or perish distorceram as coisas, inflacionaram os eventos (muitos de qualidade duvidosa) e arrastaram milhares de indivíduos com seus papers aos hotéis dos quatro cantos do planeta. A certa altura, ao renovarmos os pedidos de bolsas e auxílios, os currículos estarão mais recheados, lançaremos mais uma linha no Lattes, e é isso o que realmente importa.

Daí a impressão de que a carreira acadêmica no Brasil e alhures está enlouquecida. Perdemos o sentido da relevância, nossos papers são incipientes, a produção está mais e mais dispersa, os livros não têm unidade e, exceção feita a pequenos grupos, não há debate intelectual e ninguém lê ninguém. Essa situação estranha e esse ambiente desnaturado não parecem ser verdadeiramente um problema para muitos, talhados para a carreira solo e à vontade em relações mais competitivas. São um problema para mim, intelectual à antiga, que se sente perdedor nesse estado de coisas, mas que procura manter a capacidade de pensar e de resistir aos dois grandes males que afligem a universidade brasileira: o turismo acadêmico e o taylorismo intelectual – de propósito deixo de lado os descolados, improdutivos e predadores com suas peculiaridades e outras implicações.

Quem nos ajuda a entender esse quadro e a aquilatar os perigos é Max Weber, numa passagem da Política como vocação, na qual cita seu amigo Simmel que, ao se referir aos intelectuais russos do início do século 20, fala da existência de uma verdadeira “excitação estéril”. Weber reconhece os mesmos traços e a mesma atitude nos meios intelectuais alemães, em que a agitação vazia aparece associada a um ativismo intenso, com os intelectuais ocupados com a tarefa de levar adiante a causa da revolução, mas em que ele vê o avesso da autêntica paixão e da entrega à verdadeira causa (intelectual ou política), que vão junto com a responsabilidade e a medida. Ninguém dirá que a mesma atitude romântica politizada (adesão à causa da revolução, por exemplo) está a marcar a vida da UFMG e do nosso país, caracterizada por uma parte da comunidade descrente e desesperançosa, depois da fraude do mensalão, e outra parte satisfeita com uma nação governada por um presidente populista, surfando nos 80% de aprovação e certo de que seu papel não é o de estadista nem de chefe de governo, mas de animador de auditórios seletos e entertainer das massas. O que há sim – e nisso Weber e Simmel acertaram, ainda que olhando para outra coisa ou observando outra realidade – é o mesmo ethos e a mesma atitude: a agitação estéril, transparecida entre um aeroporto e outro, entre um paper e outro, e que, de fato, é a negação do ethos acadêmico e da vida intelectual, que exigem paz de espírito e ambientes mais serenos.

Do lado das ciências exatas, quem nos alerta contra esse estado de coisas, preocupado com os males do produtivismo, é Einstein, que declarou em entrevista: “Uma carreira acadêmica em que a pessoa é forçada a produzir textos científicos em grande quantidade gera o risco da superficialidade intelectual”.

Penso que neste ano, quando haverá eleição para reitor e, portanto, num momento em que estamos mais dispostos a rever posições e a reexaminar nossa situação, deveremos repensar a fundo a instituição que queremos e, sobretudo, a que não almejamos. Entendo que a UFMG já bateu no teto, com seus mais de 34 mil alunos (as melhores universidades do mundo têm cerca da metade), está exaurida com décadas de esforço de crescimento e corre o risco de exaurir-se ainda mais com a implantação do Reuni nos próximos anos. Fui contra este projeto, por entender que a boa escolha era investir em mais qualidade e que cabia ao Governo buscar a expansão das vagas por meio de outras políticas, como a criação de outra universidade federal na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Porém, o Reuni agora é uma realidade, e o esforço a ser feito é implantá-lo.

Outra ameaça, mais perigosa, já está no horizonte e pode levar de roldão ações afirmativas baseadas em bônus para alunos de escolas públicas, a meu ver mais condizentes com o ethos da Universidade pública. Trata-se da temerária política de inclusão da ordem de 50% patrocinada pelo Congresso e pelo Governo. Ela poderá pôr tudo a perder, com direito a faculdades “plurais” e a tudo que tem a ver com tudo, como o populismo e a demagogia, menos com aquilo que é a essência da academia e a razão de ser da universidade: a excelência e o mérito.

Enfraquecidos por dentro e ameaçados de fora, é hora de o Reitorado introduzir compensações, vencer a mediania da pós-graduação e da pesquisa (no último ranking da Capes não ficamos entre as cinco primeiras universidades classificadas com o conceito 7: apenas quatro cursos receberam esse conceito e onze ficaram com a nota 6, mas temos base para crescer), multiplicar os nichos de excelência e criar uma verdadeira universidade dentro da universidade, aumentando sua complexidade, reforçando as instâncias de resistência e se preparando para os grandes desafios do futuro.

As fontes inspiradoras bem poderão ser Weber e Einstein, se não em direção à Universidade que queremos, ao menos para evitar a UFMG que não queremos. Não será fácil, com o formalismo procedimental do TCU às costas e a ação insidiosa de setores da mídia à frente. Mas já vencemos tempos piores nos anos de chumbo.

* Professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG

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